Este artigo foi escrito na quinta-feira, 28.10.2010, antes, portanto, de qualquer resultado eleitoral.
Mais mediocridade ainda?
Marcelo de Paiva Abreu*
O Estado de São Paulo, segunda-feira, 1.12.2010
Vai haver muita celebração pós-eleitoral, tanto da vitória na eleição de ontem quanto do espetáculo da terceira maior democracia do mundo em ação. Mas o fato é que as eleições presidenciais levaram muitos eleitores ao desalento. Boa parte do eleitorado se viu obrigado a escolher o candidato menos insatisfatório. As campanhas foram de baixo nível, centradas na troca de acusações. O processo eleitoral foi marcado por inaceitável interferência do presidente da República, sob os olhares complacentes da Justiça Eleitoral. Somada à também inaceitável indefinição jurídica cercando a questão dos candidatos sem ficha limpa, produziu um balanço algo melancólico quanto à atuação do Poder Judiciário no processo eleitoral.
Houve lamentável nivelamento por baixo de propostas demagógicas. Para os dois candidatos, privatização virou pecado mortal e a ação do Estado passou a ser eficiente por definição. Ambos se equipararam quanto à irresponsabilidade fiscal. A candidata da situação por ter a sua candidatura imersa em verdadeira farra fiscal promovida pelo governo com nítidos objetivos eleitoreiros. O candidato da oposição, ventilando promessas irresponsáveis em relação a salários, aposentadorias e ao programa Bolsa-Família.
Ainda mais grave foi a falta de programas de governo minimamente detalhados pelos dois candidatos. Omissão surpreendentemente endossada, com algum entusiasmo, por significativos representantes das elites do País. O presidente de um dos maiores bancos do País, por exemplo, criticou quem defendia urgência na realização de reformas estruturais tais como a tributária, a trabalhista e a previdenciária, pois o custo seria muito grande, "o País pararia". Reformas "pontuais" resolveriam a questão e permitiriam que o Brasil crescesse 7% ao ano. Talvez mais do mesmo possa ser satisfatório do ponto de vista do clima de negócios no curto prazo, mas há muitos que consideram imprudente adiar as reformas necessárias à remoção dos obstáculos que estrangulam o crescimento econômico e a melhoria das condições de vida no Brasil.
A reiterada eleição de lideranças políticas de qualidade insatisfatória apenas sublinha quão crucial é a reforma política como objetivo de longo prazo. Qualquer esforço sustentado quanto ao controle da corrupção, em todas as suas manifestações, requer, como condição necessária, a recuperação da abalada reputação do Congresso Nacional e a redução do escopo para as práticas fisiológicas hoje predominantes.
Embora haja, naturalmente, divergências quanto ao resultado final das grandes reformas, cabem poucas dúvidas quanto ao cardápio básico. Reforma do regime tributário e redefinição da política de gastos públicos devem assegurar a redução da participação do crédito público nos financiamentos de longo prazo, frear o aumento contínuo da carga tributária e viabilizar o aumento gradual da poupança pública, elemento essencial para que se expandam os investimentos sem aumento da vulnerabilidade externa. Isso possibilitará a redução da taxa de juros de referência, sem ameaça aos objetivos de estabilização, e aliviará as pressões para a apreciação do real.
É essencial a reversão da mudança de postura do governo Lula, no seu segundo mandato, quanto a gastos públicos e que se recupere a credibilidade dos indicadores relativos a finanças públicas, hoje abalada pelo uso reiterado de truques pueris. E é importante, também, ir mais além, enfrentando o espinhoso rearranjo das finanças previdenciárias, inclusive do setor público, para que se abra espaço para a sustentação das políticas de transferência de renda.
A discussão sobre o papel do Estado na economia deve levar em conta critérios objetivos, e não ser baseada em declarações peremptórias de patriotismo. Isso inclui exorcizar o diagnóstico rudimentar de que privatizar é necessariamente impatriótico. As carências da infraestrutura são gritantes e requerem a mobilização efetiva do setor privado. Tão importante quanto assegurar a eficiência da ação do Estado, inclusive no terreno econômico, é regular a concorrência, por meio da ação de agências reguladoras. Segmento em que certamente houve retrocesso significativo nos últimos oito anos.
O desafio em relação ao aumento de produtividade afeta não apenas a provisão de serviços essenciais ao bem-estar do cidadão, tais como saúde, educação e justiça, mas também o uso de incentivos adequados à inovação no setor privado e a reavaliação da eficácia da provisão de crédito público subsidiado.
Aos políticos cabe negociar a distribuição de recursos tendo em vista objetivos conflitantes, dadas as limitações orçamentárias. Afinal de contas, governar é escolher. Mas o que vem à lembrança é a história contada por Churchill sobre a discussão a respeito de quantos encouraçados seriam construídos para a Marinha Real, em 1909: "Os almirantes queriam seis; os economistas, quatro; finalmente, concordou-se em construir oito." O que se vislumbra no futuro parece ter muito mais que ver com "pau na máquina" do que com "governar é escolher".
*Doutor em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
Tolerancia Zero: um discurso radical-oposicionista
Tolerância zero
Coturno Noturno, Domingo, Outubro 31, 2010
Que a nossa Onda Azul vire um Tsunami devastador.
Em 25 de janeiro de 1999, Tarso Genro(PT) escrevia um artigo na Folha de São Paulo, com o título “Por novas eleições presidenciais”. Um parágrafo chamava atenção:
Após frustrar irremediavelmente a generosa expectativa da nação, resta a Fernando Henrique uma única atitude: reconhecer o estado de ingovernabilidade do país e propor ao Congresso uma emenda constitucional convocando eleições presidenciais para outubro, dando um desfecho racional ao seu segundo e melancólico mandato, que terminou antes mesmo de começar.
Ali foi oficializado, como diretriz partidária e linha de conduta política, o “Fora, FHC”, que levou à eleição de Lula em 2002. O PT passaria o segundo mandato inteiro de Fernando Henrique Cardoso sabotando todas as iniciativas e pregando a derrubada do governo. Espalhando a mentira, a calúnia, jogando com todas as armas contra a democracia.Exatamente como fez agora, na campanha presidencial de 2010, tendo à frente o maior golpista que o Brasil já conheceu em sua história: Luiz Inácio Lula da Silva, um presidente que pisou e rasgou a Constituição Federal por meio dos mais diversos subterfúgios , burlando as leis, fraudando as obrigações do seu cargo, desafiando o Legislativo e o Judiciário.
Hoje, mais de 10 anos depois, é o nosso 2002. É a nossa vez de não dar trégua. O que os eleitores que votaram em José Serra querem é tolerância zero. Não queremos discursos de paz. Queremos uma oposição aberta, dura e sistemática, contra tudo e contra todos do governo Dilma Rousseff, não apoiando nenhuma das suas iniciativas, pois de outra forma jamais nos livraremos desta praga que tomou conta do país, deste lulo-petismo que caminha para virar um socialismo bolivariano. Queremos Oposição com letra maiúscula. Queremos uma defesa radical do estado de direito e da democracia. Não queremos o falso patriotismo que esconde a covardia. A compreensão que mascara o medo. A concordância que maquia o jogo interesseiro do poder. Nada de tergiversar. Nada de aliviar. Nada de poupar. Que a oposição que ainda resta respeite os milhões que votaram contra o PT, contra a corrupção, contra esta república pelega. Respeitem os seus eleitores. Respeitem o Brasil. De agora em diante, queremos tolerância zero. Nós vamos continuar lutando com mais força . Com mais contundência. Sem complacência. Que José Serra não esqueça o que disse na sua campanha: quanto mais mentiras eles disserem sobre nós, mais verdades diremos sobre eles.
A oposição deve mirar-se no que Tarso Genro, representando oficialmente o PT afirmou no seu discurso golpista de 1999:
Trata-se de reconstruir economicamente o país, o que só será possível pelo rompimento do círculo perverso de dependência ao capital especulativo, inaugurando um novo ciclo de desenvolvimento com geração de emprego, uma nova etapa de acumulação pública e privada, de proteção do parque produtivo instalado e de criação de um consistente mercado de massas. E de viabilizar o aprofundamento do Estado democrático de Direito, com a defesa da Constituição e das instituições nacionais e com a plena afirmação da cidadania, constituindo os fundamentos para um novo projeto nacional capaz de reconciliar o Estado com a sociedade e a história com o nosso destino de nação soberana.
É exatamente o que vamos pregar e cobrar neste Blog, a partir de hoje. A prática bem sucedida do mesmo discurso que levou o PT ao poder e que, com estas eleições, ficou comprovado ser o único que pode extirpar este câncer que tomou conta do país. Para começar, aqui vai o nosso primeiro brado, o nosso primeiro convite, a nossa primeira declaração de guerra: “Fora, Dilma!”, “Fora, socialismo!”, “ Fora, corrupção!”, “Fora,pelegos!”.
Coturno Noturno, Domingo, Outubro 31, 2010
Que a nossa Onda Azul vire um Tsunami devastador.
Em 25 de janeiro de 1999, Tarso Genro(PT) escrevia um artigo na Folha de São Paulo, com o título “Por novas eleições presidenciais”. Um parágrafo chamava atenção:
Após frustrar irremediavelmente a generosa expectativa da nação, resta a Fernando Henrique uma única atitude: reconhecer o estado de ingovernabilidade do país e propor ao Congresso uma emenda constitucional convocando eleições presidenciais para outubro, dando um desfecho racional ao seu segundo e melancólico mandato, que terminou antes mesmo de começar.
Ali foi oficializado, como diretriz partidária e linha de conduta política, o “Fora, FHC”, que levou à eleição de Lula em 2002. O PT passaria o segundo mandato inteiro de Fernando Henrique Cardoso sabotando todas as iniciativas e pregando a derrubada do governo. Espalhando a mentira, a calúnia, jogando com todas as armas contra a democracia.Exatamente como fez agora, na campanha presidencial de 2010, tendo à frente o maior golpista que o Brasil já conheceu em sua história: Luiz Inácio Lula da Silva, um presidente que pisou e rasgou a Constituição Federal por meio dos mais diversos subterfúgios , burlando as leis, fraudando as obrigações do seu cargo, desafiando o Legislativo e o Judiciário.
Hoje, mais de 10 anos depois, é o nosso 2002. É a nossa vez de não dar trégua. O que os eleitores que votaram em José Serra querem é tolerância zero. Não queremos discursos de paz. Queremos uma oposição aberta, dura e sistemática, contra tudo e contra todos do governo Dilma Rousseff, não apoiando nenhuma das suas iniciativas, pois de outra forma jamais nos livraremos desta praga que tomou conta do país, deste lulo-petismo que caminha para virar um socialismo bolivariano. Queremos Oposição com letra maiúscula. Queremos uma defesa radical do estado de direito e da democracia. Não queremos o falso patriotismo que esconde a covardia. A compreensão que mascara o medo. A concordância que maquia o jogo interesseiro do poder. Nada de tergiversar. Nada de aliviar. Nada de poupar. Que a oposição que ainda resta respeite os milhões que votaram contra o PT, contra a corrupção, contra esta república pelega. Respeitem os seus eleitores. Respeitem o Brasil. De agora em diante, queremos tolerância zero. Nós vamos continuar lutando com mais força . Com mais contundência. Sem complacência. Que José Serra não esqueça o que disse na sua campanha: quanto mais mentiras eles disserem sobre nós, mais verdades diremos sobre eles.
A oposição deve mirar-se no que Tarso Genro, representando oficialmente o PT afirmou no seu discurso golpista de 1999:
Trata-se de reconstruir economicamente o país, o que só será possível pelo rompimento do círculo perverso de dependência ao capital especulativo, inaugurando um novo ciclo de desenvolvimento com geração de emprego, uma nova etapa de acumulação pública e privada, de proteção do parque produtivo instalado e de criação de um consistente mercado de massas. E de viabilizar o aprofundamento do Estado democrático de Direito, com a defesa da Constituição e das instituições nacionais e com a plena afirmação da cidadania, constituindo os fundamentos para um novo projeto nacional capaz de reconciliar o Estado com a sociedade e a história com o nosso destino de nação soberana.
É exatamente o que vamos pregar e cobrar neste Blog, a partir de hoje. A prática bem sucedida do mesmo discurso que levou o PT ao poder e que, com estas eleições, ficou comprovado ser o único que pode extirpar este câncer que tomou conta do país. Para começar, aqui vai o nosso primeiro brado, o nosso primeiro convite, a nossa primeira declaração de guerra: “Fora, Dilma!”, “Fora, socialismo!”, “ Fora, corrupção!”, “Fora,pelegos!”.
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quarta-feira, 3 de novembro de 2010
44% estão na oposição - Marco Antonio Villa
44% estão na oposição
Marco Antonio Villa, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos
Folha de S.Paulo, 3.11.2010
A OPOSIÇÃO acreditou que criticar o governo levaria ao isolamento político. O resultado das urnas sinalizou o contrário: 44% do eleitorado disse não a Dilma. Ela era candidata desde 2008. Ninguém falou em prévias, nenhum líder fez muxoxo. Lula uniu não só o partido, como toda a base. Articulou, ainda em 2009, as alianças regionais e centrou fogo para garantir um Congresso com ampla maioria, para que Dilma pudesse governar tranquilamente. Afinal, nem de longe ela tem sua capacidade de articulação política.
E a oposição? Demorou para definir seu candidato. Quando finalmente chegou ao nome de Serra, o partido estava dividido, vítima da fogueira das vaidades. Ao buscar as alianças regionais, encontrou o terreno já ocupado. Não tinha aliados de peso no Norte e Centro-Oeste, e principalmente no Nordeste. Neste cenário, ter chegado ao segundo turno foi uma vitória. No último mês deu mostras de combatividade, de disposição de enfrentar um governo que usou e abusou como nunca da máquina estatal. Como, agora, fazer oposição? Não cabe aos governadores serem os principais atores desta luta — a União pode retaliar e isso, no Brasil, é considerado “normal”.
É principalmente no Congresso Nacional que a oposição deve travar o debate. Lá estará, inicialmente, enfraquecida. Perdeu na última eleição, especialmente na Câmara, quadros importantes. Mesmo assim, pode organizar um “gabinete fantasma” e municiar seus parlamentares e militantes com informações e argumentos. Usar as Câmaras Municipais e as Assembleias estaduais como espaços para atacar o governo federal. E abastecer a imprensa — como sempre o PT fez — com denúncias e críticas.
Espaço para a oposição existe. O primeiro passo é assumir o seu papel. Deve elaborar um projeto alternativo para o Brasil. Sair da esfera dos ataques pessoais e politizar o debate, acabar com o personalismo e o regionalismo tacanho, formar quadros e mobilizar suas bases. É uma tarefa imediata, não para ser realizada às vésperas da eleição presidencial de 2014.
O lulismo tem pilares de barro. É frágil. Não tem ideologia. Não passa de uma aliança conservadora das velhas oligarquias, de ocupantes de milhares de cargos de confiança, da máfia sindical e do grande capital parasitário. Como disse Monteiro Lobato, preso pelo Estado Novo e agora perseguido pelo lulismo: “Os nossos estadistas nos últimos tempos positivamente pensam com outros órgãos que não o cérebro -com o calcanhar, com o cotovelo, com certo penduricalhos, raramente com os miolos”.
Marco Antonio Villa, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos
Folha de S.Paulo, 3.11.2010
A OPOSIÇÃO acreditou que criticar o governo levaria ao isolamento político. O resultado das urnas sinalizou o contrário: 44% do eleitorado disse não a Dilma. Ela era candidata desde 2008. Ninguém falou em prévias, nenhum líder fez muxoxo. Lula uniu não só o partido, como toda a base. Articulou, ainda em 2009, as alianças regionais e centrou fogo para garantir um Congresso com ampla maioria, para que Dilma pudesse governar tranquilamente. Afinal, nem de longe ela tem sua capacidade de articulação política.
E a oposição? Demorou para definir seu candidato. Quando finalmente chegou ao nome de Serra, o partido estava dividido, vítima da fogueira das vaidades. Ao buscar as alianças regionais, encontrou o terreno já ocupado. Não tinha aliados de peso no Norte e Centro-Oeste, e principalmente no Nordeste. Neste cenário, ter chegado ao segundo turno foi uma vitória. No último mês deu mostras de combatividade, de disposição de enfrentar um governo que usou e abusou como nunca da máquina estatal. Como, agora, fazer oposição? Não cabe aos governadores serem os principais atores desta luta — a União pode retaliar e isso, no Brasil, é considerado “normal”.
É principalmente no Congresso Nacional que a oposição deve travar o debate. Lá estará, inicialmente, enfraquecida. Perdeu na última eleição, especialmente na Câmara, quadros importantes. Mesmo assim, pode organizar um “gabinete fantasma” e municiar seus parlamentares e militantes com informações e argumentos. Usar as Câmaras Municipais e as Assembleias estaduais como espaços para atacar o governo federal. E abastecer a imprensa — como sempre o PT fez — com denúncias e críticas.
Espaço para a oposição existe. O primeiro passo é assumir o seu papel. Deve elaborar um projeto alternativo para o Brasil. Sair da esfera dos ataques pessoais e politizar o debate, acabar com o personalismo e o regionalismo tacanho, formar quadros e mobilizar suas bases. É uma tarefa imediata, não para ser realizada às vésperas da eleição presidencial de 2014.
O lulismo tem pilares de barro. É frágil. Não tem ideologia. Não passa de uma aliança conservadora das velhas oligarquias, de ocupantes de milhares de cargos de confiança, da máfia sindical e do grande capital parasitário. Como disse Monteiro Lobato, preso pelo Estado Novo e agora perseguido pelo lulismo: “Os nossos estadistas nos últimos tempos positivamente pensam com outros órgãos que não o cérebro -com o calcanhar, com o cotovelo, com certo penduricalhos, raramente com os miolos”.
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O papel da oposicao - editorial Estadao
O papel da oposição
Editorial - O Estado de S.Paulo
03 de novembro de 2010
"Minha mensagem de despedida neste momento não é um adeus. É um até logo. A luta continua." Ao reconhecer a vitória de Dilma Rousseff, José Serra exortou os oposicionistas a se articularem para cumprir o papel que lhes cabe no cenário político nacional. "Para os que nos imaginam derrotados - acrescentou - quero dizer: nós estamos apenas começando uma luta de verdade." É ver para crer.
Um dos fatores decisivos da vitória de Lula foi o comportamento errático, quando não pura e simplesmente omisso, da oposição, ao longo de oito anos de governo petista e na campanha eleitoral deste ano. Lula elegeu-se em 2002 com a imagem de líder popular que fez contrastar com a de intelectual, representante da elite, de seu antecessor, Fernando Henrique. Com grande competência, Lula soube manipular esse contraste para construir a própria imagem de líder e defensor dos fracos e oprimidos e colar nos opositores o estigma de inimigos do povo. FHC virou anátema. Seu governo, "herança maldita". E a oposição, como que sofrendo de grave crise de identidade, assistiu inerme a toda essa mistificação. A tal ponto que em 2005, quando estourou o escândalo do mensalão, Lula estava blindado e imune aos efeitos negativos da corrupção que grassava ao seu redor. Por muito menos, alguns anos antes Fernando Collor fora forçado a renunciar à Presidência.
É animador, portanto, ouvir o até agora principal líder da oposição convocar seus companheiros à continuação da luta política. Pois toda nação democrática necessita de governo competente e honesto tanto quanto de oposição viva e operante, pronta e apta a fazer cumprir o fundamento da alternância no poder.
Condições objetivas para o exercício de uma oposição eficiente a partir de 1.º de janeiro existem, apesar de a base governista ter aumentado no Congresso Nacional. A oposição sai das urnas com desempenho melhor, nos pleitos majoritários, do que quatro anos atrás. A diferença de votos entre Dilma e Serra foi menor, em cerca de 10 milhões de votos, do que aquela que Lula teve sobre Alckmin em 2006, o que pode ser explicado em parte, é claro, pelo fato de que Dilma não é Lula. Além disso, o PSDB acaba de conquistar 8 governos estaduais (foi o partido que mais governadores elegeu), que se somam aos 2 do DEM e abrangem a maioria dos Estados mais populosos e prósperos, como São Paulo, Minas, Paraná e Santa Catarina.
A mesma disposição manifestada por Serra foi reiterada pelo presidente nacional dos tucanos, senador Sérgio Guerra, para quem "o PT e os que ganharam de nós nesta eleição trabalharam para construir uma hegemonia, e não uma democracia. No Congresso, vamos agir para que o contraditório se estabeleça". Por sua vez, depois de defender a necessidade de o maior partido da oposição partir para alianças e até fusões, o governador de São Paulo, Alberto Goldman, colocou o dedo na ferida: "Nós não fomos suficientemente combativos ao longo dos oito anos do governo Lula."
Pode facilitar o trabalho da futura oposição o fato de que Dilma, apesar de dispor de ampla base de apoio parlamentar, certamente não terá sobre seus aliados o mesmo controle que detém o atual presidente. E, certamente ainda mais relevante, o bloco governista poderá bater cabeça diante de previsíveis e inevitáveis discrepâncias entre políticas a serem defendidas pela próxima presidente e aquelas hoje adotadas por Lula. A considerar, ainda, a evidência de que uma importante legenda da base governista, o PSB, chega a 2011 fortalecido pelo aumento de sua bancada parlamentar e pela eleição de 6 governadores, quase todos no maior reduto petista - o Nordeste. Disposto, portanto, a trilhar tanto quanto possível seus próprios caminhos em direção à sucessão presidencial de 2014.
Mas qualquer projeto oposicionista se frustrará, principalmente em termos de consolidação da democracia, se não houver a sincera disposição de banir da vida política duas práticas nefandas que o lulo-petismo consagrou: o exercício da oposição, como fez no plano nacional até 2003, pautado exclusivamente por interesses eleitorais e o tratamento de adversários políticos como inimigos a serem dizimados. A oposição há que ser firme e combativa, sempre, e construtiva, quando possível.
Editorial - O Estado de S.Paulo
03 de novembro de 2010
"Minha mensagem de despedida neste momento não é um adeus. É um até logo. A luta continua." Ao reconhecer a vitória de Dilma Rousseff, José Serra exortou os oposicionistas a se articularem para cumprir o papel que lhes cabe no cenário político nacional. "Para os que nos imaginam derrotados - acrescentou - quero dizer: nós estamos apenas começando uma luta de verdade." É ver para crer.
Um dos fatores decisivos da vitória de Lula foi o comportamento errático, quando não pura e simplesmente omisso, da oposição, ao longo de oito anos de governo petista e na campanha eleitoral deste ano. Lula elegeu-se em 2002 com a imagem de líder popular que fez contrastar com a de intelectual, representante da elite, de seu antecessor, Fernando Henrique. Com grande competência, Lula soube manipular esse contraste para construir a própria imagem de líder e defensor dos fracos e oprimidos e colar nos opositores o estigma de inimigos do povo. FHC virou anátema. Seu governo, "herança maldita". E a oposição, como que sofrendo de grave crise de identidade, assistiu inerme a toda essa mistificação. A tal ponto que em 2005, quando estourou o escândalo do mensalão, Lula estava blindado e imune aos efeitos negativos da corrupção que grassava ao seu redor. Por muito menos, alguns anos antes Fernando Collor fora forçado a renunciar à Presidência.
É animador, portanto, ouvir o até agora principal líder da oposição convocar seus companheiros à continuação da luta política. Pois toda nação democrática necessita de governo competente e honesto tanto quanto de oposição viva e operante, pronta e apta a fazer cumprir o fundamento da alternância no poder.
Condições objetivas para o exercício de uma oposição eficiente a partir de 1.º de janeiro existem, apesar de a base governista ter aumentado no Congresso Nacional. A oposição sai das urnas com desempenho melhor, nos pleitos majoritários, do que quatro anos atrás. A diferença de votos entre Dilma e Serra foi menor, em cerca de 10 milhões de votos, do que aquela que Lula teve sobre Alckmin em 2006, o que pode ser explicado em parte, é claro, pelo fato de que Dilma não é Lula. Além disso, o PSDB acaba de conquistar 8 governos estaduais (foi o partido que mais governadores elegeu), que se somam aos 2 do DEM e abrangem a maioria dos Estados mais populosos e prósperos, como São Paulo, Minas, Paraná e Santa Catarina.
A mesma disposição manifestada por Serra foi reiterada pelo presidente nacional dos tucanos, senador Sérgio Guerra, para quem "o PT e os que ganharam de nós nesta eleição trabalharam para construir uma hegemonia, e não uma democracia. No Congresso, vamos agir para que o contraditório se estabeleça". Por sua vez, depois de defender a necessidade de o maior partido da oposição partir para alianças e até fusões, o governador de São Paulo, Alberto Goldman, colocou o dedo na ferida: "Nós não fomos suficientemente combativos ao longo dos oito anos do governo Lula."
Pode facilitar o trabalho da futura oposição o fato de que Dilma, apesar de dispor de ampla base de apoio parlamentar, certamente não terá sobre seus aliados o mesmo controle que detém o atual presidente. E, certamente ainda mais relevante, o bloco governista poderá bater cabeça diante de previsíveis e inevitáveis discrepâncias entre políticas a serem defendidas pela próxima presidente e aquelas hoje adotadas por Lula. A considerar, ainda, a evidência de que uma importante legenda da base governista, o PSB, chega a 2011 fortalecido pelo aumento de sua bancada parlamentar e pela eleição de 6 governadores, quase todos no maior reduto petista - o Nordeste. Disposto, portanto, a trilhar tanto quanto possível seus próprios caminhos em direção à sucessão presidencial de 2014.
Mas qualquer projeto oposicionista se frustrará, principalmente em termos de consolidação da democracia, se não houver a sincera disposição de banir da vida política duas práticas nefandas que o lulo-petismo consagrou: o exercício da oposição, como fez no plano nacional até 2003, pautado exclusivamente por interesses eleitorais e o tratamento de adversários políticos como inimigos a serem dizimados. A oposição há que ser firme e combativa, sempre, e construtiva, quando possível.
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Entrevista com FHC: realista, como sempre
FHC diz não endossar mais PSDB que não defenda a sua história
Folha de S.Paulo, 2/11/2010
"Não estou mais disposto a dar endosso a um PSDB que não defenda a sua história", disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), ontem, em entrevista no instituto que leva seu nome, no centro de SP.
Presidente de honra do PSDB, Fernando Henrique defende que o partido anuncie dois anos antes das eleições presidenciais seu candidato. "O PSDB não pode ficar enrolando até o final para saber se é A, B, C ou D."
O ex-presidente diz que Lula "desrespeitou a lei abundantemente" na campanha e que promove "um complexo sindical-burocrático-industrial, que escolhe vencedores, o que leva ao protecionismo".
Para FHC, a tradição brasileira de "corporativismo estatizante está voltando". Lula é uma "metamorfose ambulante que faz a mediação de tudo com tudo".
Folha - José Serra aproveitou a oportunidade do segundo turno como deveria?
Fernando Henrique Cardoso - Cada um tem um estilo e Serra foi fiel ao estilo dele. Tomou as decisões dele na campanha, com o [marqueteiro Luiz] Gonzalez. Não fez diferente do que se esperaria de Serra como um candidato persistente, que define uma linha e, aconteça o que acontecer, vai em frente.
O PSDB, e não o Serra, tem outros problemas mais complicados. Não é falta de bons candidatos. O problema é ter uma noção do coletivo, uma linguagem que expresse o coletivo, que não pode ser fechado no partido. Numa sociedade de 130 milhões de eleitores, a mensagem conta muito --no conteúdo e no modo que se transmite.
Como o Lula ficou muito fixado numa comparação para trás, os candidatos esqueceram a campanha e não definiram o futuro. Esse é o desafio --para o PSDB também.
O nosso futuro vai ser, outra vez, fornecer produtos primários? Ou vamos desenvolver inovação, modificar a educação, continuar a industrialização. Isso não foi posto [na campanha]. Qual será nossa matriz energética. Preocupa-me muito a discussão do petróleo.
Folha - Nesse campo, o seu governo quebrou o monopólio da Petrobras e implantou o modelo de concessão. A fórmula proposta por Lula, de partilha, para o pré-sal, que traz novos privilégios à Petrobras, é melhor?
Não posso responder, porque não vi a discussão. Preocupa-me esse modelo porque força uma supercapitalização [da Petrobras] sem que se saiba bem qual será o modelo de venda desse petróleo. Essa forma de partilha proposta é uma estatização do risco. O risco quem corre é o Estado, ao contrário do modelo de concessão.
O que estamos fazendo é uma dívida. Isso obriga a sobrecapitalizar a Petrobras. Parece que não temos mais problemas de poupança no Brasil. Entramos numa ilusão tremenda nessa matéria. O Tesouro faz a dívida com o mercado e empresta para o BNDES ou para a Petrobras. É como se não precisássemos mais poupar. Mas a dívida está aí. Essa questão o PSDB não politizou.
Folha - O governo Lula mobiliza fundos públicos e paraestatais e patrocina a formação de grandes empresas no país, uma espécie de complexo "industrial-burocrático", parodiando o "industrial-militar" do Eisenhower [em 1961, ao deixar o governo, o então presidente dos EUA Dwight Eisenhower alertou para os riscos de uma influência excessiva do complexo industrial-militar para o processo democrático]. Há mais ruptura ou continuidade em relação ao processo que se iniciou no seu governo, quando o BNDES e os fundos de pensão das estatais viabilizaram as privatizações?
Tudo é uma questão de medida. Os fundos [de pensão] entraram na privatização porque já tinham ações nas teles e participar do grupo de controle lhes dava vantagem. Fizeram um bom negócios Mas tive sempre o cuidado da diversificação. No mundo integrado de hoje, convém que a economia tenha um setor público eficiente e que tenha um setor privado, nacional e estrangeiro. Tentamos equilibrar isso.
O problema agora é de tendência, de gigantismo de uns poucos grupos, nesse complexo, que na verdade é sindical-burocrático-industrial, com forte orientação de escolher os vencedores. Isso é arriscado do ponto de vista político e leva ao protecionismo.
Folha - A máxima "política tem fila" foi usada para defender a precedência de Serra sobre Aécio na eleição de 2010. A fila andou ontem? Chegou a vez de Aécio Neves no PSDB?
Eu não posso dizer que passou a primeiro lugar, mas que o Aécio se saiu bem nessa campanha, se saiu. Não posso dizer que passou a primeiro lugar porque o Serra mostrou persistência e teve um desempenho razoável.
Não diria que existe um candidato que diga: "Eu naturalmente serei". Mas o PSDB também não pode ficar enrolando até o final para saber se é A, B, C ou D. Dentro de dois anos temos de decidir quem é e esse é tem de ser de todo mundo, tem de ser coletivo.
Não estou disposto mais a dar endosso a um PSDB que não defenda a sua história. Tem limites para isso, porque não dá certo. Tem de defender o que nós fizemos. A privatização das teles foi bom para o povo, para o Tesouro e para o país. A privatização da Vale foi um gol importante, porque, além do mais, a Vale é uma empresa nacional. A privatização da Embraer foi ótima.
Então por que não dizer isso? Por que não defender? Privatizar não é entregar o país ao adversário, pegar o dinheiro do povo e jogar fora. Não. É valorizar o dinheiro do país. Tudo isso criou mais emprego, deu mais renda para o Estado.
Do ponto de vista econômico, as questões estão bem encaminhados. Os motores da economia são fortes. Os problemas maiores são em outras áreas: educação, segurança, democracia, igualdade perante a lei, droga. Não é para saber se a economia vai crescer, é se a sociedade vai ser melhor.
Folha - Sobre a democracia no Brasil, o sr. escreveu, recentemente, que é uma maquinaria institucional em andamento, mas que lhe falta o "espírito": "a convicção na igualdade perante a lei, a busca do interesse público e de um caminho para maior igualdade social". Sinais desse espírito no processo eleitoral que se encerrou?
Francamente não vejo. O presidente Lula desrespeitou a lei abundantemente. Do ponto de vista da cultura política, nós regredimos. Não digo do lado da mecânica institucional --a eleição foi limpa, livre. Mas na cultura política, demos um passo para trás, no caso do comportamento [de Lula] e da aceitação da transgressão, como se fosse banal.
Houve abuso do poder político, que tem sempre um componente de poder econômico. Quantos prefeitos foram cassados aqui em São Paulo, por exemplo em Mauá, por abuso do poder econômico? Por nada, comparado com esse abuso a que assistimos agora. Não posso dizer que houve progresso da cultura democrática brasileira.
Aqui está havendo outra confusão. Pensar que a democracia é simplesmente fazer com que as condições de vida melhorem. Ela é também, mas não se esqueça que as ditaduras fazem isso mais depressa.
Folha - Como o sr. vê a volta de temas como religião na campanha?
Com preocupação. O Estado é laico, e trazer a questão religiosa para primeiro plano de uma discussão política não ajuda. Todas as religiões têm o direito de pensar o que queiram e de pregar até o comportamento eleitoral de seus fieis. Mas trazer a questão como se fosse um debate importante, não acho que ajude.
Folha - A dose dos chamados marqueteiros nas campanhas tucanas está exagerada?
Sim, em todas as campanhas. Nós entramos num marquetismo perigoso, que despolitiza. Hoje a campanha faz pesquisas e vê o que a população quer naquele momento. A população sempre quer educação, saúde e segurança, e então você organiza tudo em termos de educação, saúde e segurança.
Sem perceber que a verdadeira questão é como você transforma em problema uma coisa que a população não percebeu ainda como problema. Liderar é isso. Aí você abre um caminho. A pesquisa é útil não para você repetir o que ela disse, mas para você tentar influenciar no comportamento, a partir de seus valores.
Suponha uma pesquisa sobre privatização em que a maioria é contra. A posição do líder político é tentar convencer a população [do contrário]. O que nós temos na campanha é a reafirmação dos clichês colhidos nas pesquisas. Onde é que está a liderança política, que é justamente você propor valor novo. O líder muda, não segue.
Folha - Como mostrar as diferenças entre PT e PSDB? As ideias tucanas não são difíceis de assimilar?
Você se lembra de quando fui presidente? A ambição de todo mundo era cortar a burocracia. Por quê? Porque foi politizado.
É preciso politizar, e não é na hora da campanha.O PSDB, quando digo que tem que ter por referência o coletivo e ter um projeto, é agora. Não é para daqui a quatro anos. Daqui a quatro anos é tarde. Ou durante quatro anos você martela os seus valores e transforma os seus valores em algo que é compartilhado por mais gente, ou chega lá e não consegue. É tarde.
Folha - Mas o PSDB deixou o Lula falando sozinho um bom tempo.
Não foi só o PSDB. Foi todo mundo. Quando o nosso sistema presidencialista é exercido a partir de uma pessoa carismática como o Lula e que tem por trás um partido organizado, ele quase se torna um pensamento único.
Aqui, fora da campanha, só o governo fala. Quando fala sem parar, o caso atual, e sob forma de propaganda, fica difícil de controlar. No meu tempo, também era o governo que falava. Como não tenho o mesmo estilo e não usava uma visão eleitoreira o tempo todo, não aparecia tanto. Mas isso é da cultura brasileira.
Jornal dá o "outro lado", mas a TV não dá --só dá na campanha. O que a mídia em geral transmitiu ao longo desses oito anos? Lula, violência e futebol.
Folha - A oposição, liderada pelo PSDB, ficou mais forte nos Estados e mais fraca no Congresso. Como fará para resistir à força gravitacional do Planalto?
Não é fácil, porque os Estados têm interesses administrativos. Mas um pouco mais de consistência oposicionista pode. No regime militar, Montoro e Tancredo eram governadores e se opunham. É preciso recuperar um pouco essa dimensão política.
Mas o carro chefe para puxar [a oposição] não pode ser o governador. Tem de ser o partido. E não é o PSDB só. Esses 44 milhões [votação de Serra no domingo] não são do PSDB. É uma parte da sociedade brasileira que pensa de outra maneira. E não se pode aceitar a ideia de que são os mais pobres contra os mais ricos. Nunca vi uma elite tão grande: 44 milhões de pessoas.
Folha - A polarização nacional entre PT e PSDB completou 16 anos. Tem feito mais bem ou mais mal ao Brasil?
O que o Chile fez na forma da Concertação [a aliança entre o Partido Socialista e a Democracia Cristã que governou o Chile de 1990 a 2010], fizemos aqui sob a forma de oposição. Há muito mais uma linha de continuidade que de quebra. Queira ou não queira, o pessoal do PT aderiu, grosso modo, ao caminho aberto por nós. Isso é que deu crescimento ao Brasil. A briga, na verdade, é pelo poder, não é tanto pelo conteúdo que se faz. No tempo que cheguei lá, eu escrevi o que ia fazer e fiz. Nunca mudei o rumo. O Lula mudou o rumo. Agora acho que tem aí o começo de um rumo que não é o mesmo meu, que é esse mais burocrático-sindical-industrial. E tem uma diferença na concepção da democracia, e o PSDB tem de acentuar essa diferença.
Folha - Mas o que seria essa social-democracia?
Social-democracia, vamos devagar com o ardor. O sujeito da social-democracia europeia eram a classe trabalhadora e os sindicatos. Aqui são os pobres. O Lula deixou de falar em trabalhador para falar em pobre. Mudou. Nós descobrimos uma tecnologia de lidar com a pobreza, mas estamos por enquanto mitigando a pobreza.
Tem de transformar o pré-sal em neurônio. Esse é o saldo para uma sociedade desenvolvida. Social-democracia hoje é isso. É inclusão social, respeitando o mercado, sabendo que o Estado terá um papel importante, mas não é tudo, e que o mercado tem de ser regulado de olho numa inclusão que não seja só de mitigação. Não pode ter predomínio do olhar do Estado. Está se perfilando, no PT e adjacências, uma predominância do olhar do Estado, como se o Estado fosse a solução das coisas. Continuo achando que o Estado é indispensável, mas a sociedade deve ter uma participação mais ativa. Os movimentos sociais estão todos cooptados.
Folha - Então a diferença entre PT e PSDB, para o sr., se dá em relação ao papel do Estado.
Mas não no sentido de não ter papel para o Estado. No sentido de que esse papel tenha de ser de um Estado que se abra para a sociedade. Não de um Estado burocrático, que se imponha à sociedade.
A nossa tradição é de corporativismo estatizante, e isso está voltando. É uma mistura fina, uma mistura de Getúlio, Geisel e Lula. O Lula é mais complicado que isso, porque é isso e o contrário disso. Como é a metamorfose ambulante, faz a mediação de tudo com tudo.
Lula sempre faz a mediação para que o setor privado não seja sufocado completamente. Não sei como Dilma vai proceder.
Folha - O sr. sente que isso tende a se aprofundar nesse novo governo?
Sim, a segunda parte do segundo mandato de Lula foi assim. A crise global deu a desculpa para o Estado gastar mais. E o pobre do Keynes pagou o preço. Tudo é Keynes [O economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946) defendeu, em sua obra "Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda", a intervenção do Estado na economia para controlar as crises econômicas]. Investimento não cresceu, gasto público se expandiu, foi Keynes.
Não acho que o Brasil vá no sentido da Venezuela porque a sociedade nossa é mais forte. Aqui há empresas, imprensa, universidades, igrejas, uma sociedade civil maior, mais forte. Isso leva o governo a também ter cautela. Veja o discurso da Dilma de ontem [domingo]. Ela beijou a cruz.
Como todo mundo percebia uma tendência nesse sentido, ela disse: "Olha aqui, vou respeitar a democracia, vou dar a mão a todos". Ela tem que dizer isso, porque senão ela não governa.
Folha - O que esperar de Dilma Rousseff, que estreia num cargo eletivo logo na Presidência, no dia 1º de janeiro?
Nós não sabemos não só o que ela pensa, mas como é que ela faz. O Brasil deu um cheque em branco para a Dilma. Vamos ver o que vai acontecer com a conjuntura econômica, mundial e aqui. Há um problema complicado na balança de pagamentos, um deficit crescente, uma taxa de juros elevada e uma taxa de câmbio cruel.
Folha de S.Paulo, 2/11/2010
"Não estou mais disposto a dar endosso a um PSDB que não defenda a sua história", disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), ontem, em entrevista no instituto que leva seu nome, no centro de SP.
Presidente de honra do PSDB, Fernando Henrique defende que o partido anuncie dois anos antes das eleições presidenciais seu candidato. "O PSDB não pode ficar enrolando até o final para saber se é A, B, C ou D."
O ex-presidente diz que Lula "desrespeitou a lei abundantemente" na campanha e que promove "um complexo sindical-burocrático-industrial, que escolhe vencedores, o que leva ao protecionismo".
Para FHC, a tradição brasileira de "corporativismo estatizante está voltando". Lula é uma "metamorfose ambulante que faz a mediação de tudo com tudo".
Folha - José Serra aproveitou a oportunidade do segundo turno como deveria?
Fernando Henrique Cardoso - Cada um tem um estilo e Serra foi fiel ao estilo dele. Tomou as decisões dele na campanha, com o [marqueteiro Luiz] Gonzalez. Não fez diferente do que se esperaria de Serra como um candidato persistente, que define uma linha e, aconteça o que acontecer, vai em frente.
O PSDB, e não o Serra, tem outros problemas mais complicados. Não é falta de bons candidatos. O problema é ter uma noção do coletivo, uma linguagem que expresse o coletivo, que não pode ser fechado no partido. Numa sociedade de 130 milhões de eleitores, a mensagem conta muito --no conteúdo e no modo que se transmite.
Como o Lula ficou muito fixado numa comparação para trás, os candidatos esqueceram a campanha e não definiram o futuro. Esse é o desafio --para o PSDB também.
O nosso futuro vai ser, outra vez, fornecer produtos primários? Ou vamos desenvolver inovação, modificar a educação, continuar a industrialização. Isso não foi posto [na campanha]. Qual será nossa matriz energética. Preocupa-me muito a discussão do petróleo.
Folha - Nesse campo, o seu governo quebrou o monopólio da Petrobras e implantou o modelo de concessão. A fórmula proposta por Lula, de partilha, para o pré-sal, que traz novos privilégios à Petrobras, é melhor?
Não posso responder, porque não vi a discussão. Preocupa-me esse modelo porque força uma supercapitalização [da Petrobras] sem que se saiba bem qual será o modelo de venda desse petróleo. Essa forma de partilha proposta é uma estatização do risco. O risco quem corre é o Estado, ao contrário do modelo de concessão.
O que estamos fazendo é uma dívida. Isso obriga a sobrecapitalizar a Petrobras. Parece que não temos mais problemas de poupança no Brasil. Entramos numa ilusão tremenda nessa matéria. O Tesouro faz a dívida com o mercado e empresta para o BNDES ou para a Petrobras. É como se não precisássemos mais poupar. Mas a dívida está aí. Essa questão o PSDB não politizou.
Folha - O governo Lula mobiliza fundos públicos e paraestatais e patrocina a formação de grandes empresas no país, uma espécie de complexo "industrial-burocrático", parodiando o "industrial-militar" do Eisenhower [em 1961, ao deixar o governo, o então presidente dos EUA Dwight Eisenhower alertou para os riscos de uma influência excessiva do complexo industrial-militar para o processo democrático]. Há mais ruptura ou continuidade em relação ao processo que se iniciou no seu governo, quando o BNDES e os fundos de pensão das estatais viabilizaram as privatizações?
Tudo é uma questão de medida. Os fundos [de pensão] entraram na privatização porque já tinham ações nas teles e participar do grupo de controle lhes dava vantagem. Fizeram um bom negócios Mas tive sempre o cuidado da diversificação. No mundo integrado de hoje, convém que a economia tenha um setor público eficiente e que tenha um setor privado, nacional e estrangeiro. Tentamos equilibrar isso.
O problema agora é de tendência, de gigantismo de uns poucos grupos, nesse complexo, que na verdade é sindical-burocrático-industrial, com forte orientação de escolher os vencedores. Isso é arriscado do ponto de vista político e leva ao protecionismo.
Folha - A máxima "política tem fila" foi usada para defender a precedência de Serra sobre Aécio na eleição de 2010. A fila andou ontem? Chegou a vez de Aécio Neves no PSDB?
Eu não posso dizer que passou a primeiro lugar, mas que o Aécio se saiu bem nessa campanha, se saiu. Não posso dizer que passou a primeiro lugar porque o Serra mostrou persistência e teve um desempenho razoável.
Não diria que existe um candidato que diga: "Eu naturalmente serei". Mas o PSDB também não pode ficar enrolando até o final para saber se é A, B, C ou D. Dentro de dois anos temos de decidir quem é e esse é tem de ser de todo mundo, tem de ser coletivo.
Não estou disposto mais a dar endosso a um PSDB que não defenda a sua história. Tem limites para isso, porque não dá certo. Tem de defender o que nós fizemos. A privatização das teles foi bom para o povo, para o Tesouro e para o país. A privatização da Vale foi um gol importante, porque, além do mais, a Vale é uma empresa nacional. A privatização da Embraer foi ótima.
Então por que não dizer isso? Por que não defender? Privatizar não é entregar o país ao adversário, pegar o dinheiro do povo e jogar fora. Não. É valorizar o dinheiro do país. Tudo isso criou mais emprego, deu mais renda para o Estado.
Do ponto de vista econômico, as questões estão bem encaminhados. Os motores da economia são fortes. Os problemas maiores são em outras áreas: educação, segurança, democracia, igualdade perante a lei, droga. Não é para saber se a economia vai crescer, é se a sociedade vai ser melhor.
Folha - Sobre a democracia no Brasil, o sr. escreveu, recentemente, que é uma maquinaria institucional em andamento, mas que lhe falta o "espírito": "a convicção na igualdade perante a lei, a busca do interesse público e de um caminho para maior igualdade social". Sinais desse espírito no processo eleitoral que se encerrou?
Francamente não vejo. O presidente Lula desrespeitou a lei abundantemente. Do ponto de vista da cultura política, nós regredimos. Não digo do lado da mecânica institucional --a eleição foi limpa, livre. Mas na cultura política, demos um passo para trás, no caso do comportamento [de Lula] e da aceitação da transgressão, como se fosse banal.
Houve abuso do poder político, que tem sempre um componente de poder econômico. Quantos prefeitos foram cassados aqui em São Paulo, por exemplo em Mauá, por abuso do poder econômico? Por nada, comparado com esse abuso a que assistimos agora. Não posso dizer que houve progresso da cultura democrática brasileira.
Aqui está havendo outra confusão. Pensar que a democracia é simplesmente fazer com que as condições de vida melhorem. Ela é também, mas não se esqueça que as ditaduras fazem isso mais depressa.
Folha - Como o sr. vê a volta de temas como religião na campanha?
Com preocupação. O Estado é laico, e trazer a questão religiosa para primeiro plano de uma discussão política não ajuda. Todas as religiões têm o direito de pensar o que queiram e de pregar até o comportamento eleitoral de seus fieis. Mas trazer a questão como se fosse um debate importante, não acho que ajude.
Folha - A dose dos chamados marqueteiros nas campanhas tucanas está exagerada?
Sim, em todas as campanhas. Nós entramos num marquetismo perigoso, que despolitiza. Hoje a campanha faz pesquisas e vê o que a população quer naquele momento. A população sempre quer educação, saúde e segurança, e então você organiza tudo em termos de educação, saúde e segurança.
Sem perceber que a verdadeira questão é como você transforma em problema uma coisa que a população não percebeu ainda como problema. Liderar é isso. Aí você abre um caminho. A pesquisa é útil não para você repetir o que ela disse, mas para você tentar influenciar no comportamento, a partir de seus valores.
Suponha uma pesquisa sobre privatização em que a maioria é contra. A posição do líder político é tentar convencer a população [do contrário]. O que nós temos na campanha é a reafirmação dos clichês colhidos nas pesquisas. Onde é que está a liderança política, que é justamente você propor valor novo. O líder muda, não segue.
Folha - Como mostrar as diferenças entre PT e PSDB? As ideias tucanas não são difíceis de assimilar?
Você se lembra de quando fui presidente? A ambição de todo mundo era cortar a burocracia. Por quê? Porque foi politizado.
É preciso politizar, e não é na hora da campanha.O PSDB, quando digo que tem que ter por referência o coletivo e ter um projeto, é agora. Não é para daqui a quatro anos. Daqui a quatro anos é tarde. Ou durante quatro anos você martela os seus valores e transforma os seus valores em algo que é compartilhado por mais gente, ou chega lá e não consegue. É tarde.
Folha - Mas o PSDB deixou o Lula falando sozinho um bom tempo.
Não foi só o PSDB. Foi todo mundo. Quando o nosso sistema presidencialista é exercido a partir de uma pessoa carismática como o Lula e que tem por trás um partido organizado, ele quase se torna um pensamento único.
Aqui, fora da campanha, só o governo fala. Quando fala sem parar, o caso atual, e sob forma de propaganda, fica difícil de controlar. No meu tempo, também era o governo que falava. Como não tenho o mesmo estilo e não usava uma visão eleitoreira o tempo todo, não aparecia tanto. Mas isso é da cultura brasileira.
Jornal dá o "outro lado", mas a TV não dá --só dá na campanha. O que a mídia em geral transmitiu ao longo desses oito anos? Lula, violência e futebol.
Folha - A oposição, liderada pelo PSDB, ficou mais forte nos Estados e mais fraca no Congresso. Como fará para resistir à força gravitacional do Planalto?
Não é fácil, porque os Estados têm interesses administrativos. Mas um pouco mais de consistência oposicionista pode. No regime militar, Montoro e Tancredo eram governadores e se opunham. É preciso recuperar um pouco essa dimensão política.
Mas o carro chefe para puxar [a oposição] não pode ser o governador. Tem de ser o partido. E não é o PSDB só. Esses 44 milhões [votação de Serra no domingo] não são do PSDB. É uma parte da sociedade brasileira que pensa de outra maneira. E não se pode aceitar a ideia de que são os mais pobres contra os mais ricos. Nunca vi uma elite tão grande: 44 milhões de pessoas.
Folha - A polarização nacional entre PT e PSDB completou 16 anos. Tem feito mais bem ou mais mal ao Brasil?
O que o Chile fez na forma da Concertação [a aliança entre o Partido Socialista e a Democracia Cristã que governou o Chile de 1990 a 2010], fizemos aqui sob a forma de oposição. Há muito mais uma linha de continuidade que de quebra. Queira ou não queira, o pessoal do PT aderiu, grosso modo, ao caminho aberto por nós. Isso é que deu crescimento ao Brasil. A briga, na verdade, é pelo poder, não é tanto pelo conteúdo que se faz. No tempo que cheguei lá, eu escrevi o que ia fazer e fiz. Nunca mudei o rumo. O Lula mudou o rumo. Agora acho que tem aí o começo de um rumo que não é o mesmo meu, que é esse mais burocrático-sindical-industrial. E tem uma diferença na concepção da democracia, e o PSDB tem de acentuar essa diferença.
Folha - Mas o que seria essa social-democracia?
Social-democracia, vamos devagar com o ardor. O sujeito da social-democracia europeia eram a classe trabalhadora e os sindicatos. Aqui são os pobres. O Lula deixou de falar em trabalhador para falar em pobre. Mudou. Nós descobrimos uma tecnologia de lidar com a pobreza, mas estamos por enquanto mitigando a pobreza.
Tem de transformar o pré-sal em neurônio. Esse é o saldo para uma sociedade desenvolvida. Social-democracia hoje é isso. É inclusão social, respeitando o mercado, sabendo que o Estado terá um papel importante, mas não é tudo, e que o mercado tem de ser regulado de olho numa inclusão que não seja só de mitigação. Não pode ter predomínio do olhar do Estado. Está se perfilando, no PT e adjacências, uma predominância do olhar do Estado, como se o Estado fosse a solução das coisas. Continuo achando que o Estado é indispensável, mas a sociedade deve ter uma participação mais ativa. Os movimentos sociais estão todos cooptados.
Folha - Então a diferença entre PT e PSDB, para o sr., se dá em relação ao papel do Estado.
Mas não no sentido de não ter papel para o Estado. No sentido de que esse papel tenha de ser de um Estado que se abra para a sociedade. Não de um Estado burocrático, que se imponha à sociedade.
A nossa tradição é de corporativismo estatizante, e isso está voltando. É uma mistura fina, uma mistura de Getúlio, Geisel e Lula. O Lula é mais complicado que isso, porque é isso e o contrário disso. Como é a metamorfose ambulante, faz a mediação de tudo com tudo.
Lula sempre faz a mediação para que o setor privado não seja sufocado completamente. Não sei como Dilma vai proceder.
Folha - O sr. sente que isso tende a se aprofundar nesse novo governo?
Sim, a segunda parte do segundo mandato de Lula foi assim. A crise global deu a desculpa para o Estado gastar mais. E o pobre do Keynes pagou o preço. Tudo é Keynes [O economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946) defendeu, em sua obra "Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda", a intervenção do Estado na economia para controlar as crises econômicas]. Investimento não cresceu, gasto público se expandiu, foi Keynes.
Não acho que o Brasil vá no sentido da Venezuela porque a sociedade nossa é mais forte. Aqui há empresas, imprensa, universidades, igrejas, uma sociedade civil maior, mais forte. Isso leva o governo a também ter cautela. Veja o discurso da Dilma de ontem [domingo]. Ela beijou a cruz.
Como todo mundo percebia uma tendência nesse sentido, ela disse: "Olha aqui, vou respeitar a democracia, vou dar a mão a todos". Ela tem que dizer isso, porque senão ela não governa.
Folha - O que esperar de Dilma Rousseff, que estreia num cargo eletivo logo na Presidência, no dia 1º de janeiro?
Nós não sabemos não só o que ela pensa, mas como é que ela faz. O Brasil deu um cheque em branco para a Dilma. Vamos ver o que vai acontecer com a conjuntura econômica, mundial e aqui. Há um problema complicado na balança de pagamentos, um deficit crescente, uma taxa de juros elevada e uma taxa de câmbio cruel.
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terça-feira, 2 de novembro de 2010
Derrota de Serra: uma explicacao humoristica (ou capilar)
Carecas de saber
JOÃO PEREIRA COUTINHO
Folha de S.Paulo, 2/11/2010
Para ganhar essa eleição, alguém deveria ter dito a José Serra duas palavras: "implante" ou "peruca"
SOU PORTUGUÊS, mas tenho vivido no Brasil nas últimas semanas. E o mais engraçado é que nem sequer cheguei a sair de Lisboa.
A culpa é das eleições brasileiras, que comentei para a televisão portuguesa. Isso implicou trabalho: semanas e semanas e semanas de leituras esotéricas sobre candidatos, sistema eleitoral, indicadores econômicos. Sem falar de telefonemas ruinosos para amigos paulistanos: gente do PT, gente do PSDB. E até cartomantes, que acertaram mais que as pesquisas no primeiro turno.
Tornei-me especialista no assunto e todas as noites sonhava com Dilma, ou com Serra, ou com Marina. E com o palhaço Tiririca, é claro. Pior do que já estou, não fico.
Mas sinto culpa. Uma culpa profunda, porque nunca disse a verdade sobre o pleito eleitoral. Sim, nas minhas intervenções públicas, falava do óbvio. As interferências de Lula na campanha, impróprias de um país civilizado.
A polêmica do aborto, que em condições normais teria liquidado Dilma. O caso Erenice e a quebra do sigilo fiscal da família Serra, uma vergonha em qualquer hemisfério.
E quando o âncora de serviço me perguntava sobre a possível derrota de Serra, eu preparava minha voz de tenor, meu rosto de sabedoria e repetia o que toda gente repete: é difícil combater a popularidade de Lula; é difícil combater o peso de um Estado assistencialista que praticamente comprou os pobres todos do Brasil; e Serra, coitado, não conseguiu encontrar o tom certo na campanha.
Nem sequer soube combater a acusação de que tencionava privatizar a Petrobras (uma acusação assassina, como se viu com Alckmin em 2006).
Inútil. Tudo isso foi inútil. Se eu fosse corajoso, e não esse covarde que se olha ao espelho, teria dito a verdade ao vivo, na TV, e calado os meus colegas. Faria cara de enfado, retiraria o microfone do blazer e diria: "Serra vai perder porque é careca, meninos". E depois abandonaria o estúdio, com passos triunfais, perante o choque geral.
É a verdade. E Simon Carr, o grande jornalista britânico, concorda comigo. Carr não escreveu sobre Serra, mas seu último artigo para a revista "Intelligent Life" (o título diz tudo) é brutal e certíssimo: a partir da década de 60, os carecas desapareceram da política ocidental.
O leitor é um apreciador de Winston Churchill? Esqueça. O monumental estadista que venceu a Segunda Guerra jamais seria reeleito hoje: careca, gordo, fumante, politicamente incorreto -seria trucidado em qualquer eleição.
Escreve Carr que, a partir da década de 60, houve um colapso da autoridade na política. O eleitorado, para lá da competência, passou a valorizar uma outra qualidade: a juventude. Ou, pelo menos, a aparência de juventude. E não existe maior símbolo de juventude que o cabelo.
Na Grã-Bretanha, Alec Douglas-Home foi o último premiê careca. Em 1963. Depois dele, nunca mais houve carecas em Downing Street.
E os que tentaram (como William Hague ou Duncan Smith, ambos conservadores) foram desfeitos pelos trabalhistas. David Cameron quebrou o enguiço, mas cuidado, avisa Carr: Cameron está a perder cabelo; o seu índice de popularidade está a baixar também.
Simon Carr não aplica sua análise a outros países. Aplico eu. Nos Estados Unidos, o último presidente calvo foi Dwight Einsenhower. Em 1953. Gerald Ford é um caso discutível, mas Ford assumiu a presidência depois da demissão de Nixon. Sem passar pelas urnas.
De então para cá, tivemos Carter, Reagan, Bush (pai), Clinton, Bush (filho) e agora Obama. É preciso dizer o que essa gente toda tinha em comum?
Mesmo na Europa, e até em Portugal, a tese de Carr confere: em Portugal, nos últimos anos, jamais tivemos um premiê ou mesmo um presidente da República calvo.
E, na Europa, Berlusconi poderia ser exceção da regra. Isso se Berlusconi não tivesse sofrido as agruras do inferno para implantar cabelo. "Fiz isso por respeito a Itália e aos italianos", disse ele, em comunicação célebre. Itália agradeceu.
O Brasil, não: elegeu Dilma, ou seja, a única candidata com juba de leão. Em 2006 foi a mesma coisa entre Lula e Alckmin.
Para ganhar essa eleição, alguém deveria ter dito a José Serra duas palavras: "implante" ou "peruca". Em política, não é dos carecas que as urnas gostam mais.
JOÃO PEREIRA COUTINHO
Folha de S.Paulo, 2/11/2010
Para ganhar essa eleição, alguém deveria ter dito a José Serra duas palavras: "implante" ou "peruca"
SOU PORTUGUÊS, mas tenho vivido no Brasil nas últimas semanas. E o mais engraçado é que nem sequer cheguei a sair de Lisboa.
A culpa é das eleições brasileiras, que comentei para a televisão portuguesa. Isso implicou trabalho: semanas e semanas e semanas de leituras esotéricas sobre candidatos, sistema eleitoral, indicadores econômicos. Sem falar de telefonemas ruinosos para amigos paulistanos: gente do PT, gente do PSDB. E até cartomantes, que acertaram mais que as pesquisas no primeiro turno.
Tornei-me especialista no assunto e todas as noites sonhava com Dilma, ou com Serra, ou com Marina. E com o palhaço Tiririca, é claro. Pior do que já estou, não fico.
Mas sinto culpa. Uma culpa profunda, porque nunca disse a verdade sobre o pleito eleitoral. Sim, nas minhas intervenções públicas, falava do óbvio. As interferências de Lula na campanha, impróprias de um país civilizado.
A polêmica do aborto, que em condições normais teria liquidado Dilma. O caso Erenice e a quebra do sigilo fiscal da família Serra, uma vergonha em qualquer hemisfério.
E quando o âncora de serviço me perguntava sobre a possível derrota de Serra, eu preparava minha voz de tenor, meu rosto de sabedoria e repetia o que toda gente repete: é difícil combater a popularidade de Lula; é difícil combater o peso de um Estado assistencialista que praticamente comprou os pobres todos do Brasil; e Serra, coitado, não conseguiu encontrar o tom certo na campanha.
Nem sequer soube combater a acusação de que tencionava privatizar a Petrobras (uma acusação assassina, como se viu com Alckmin em 2006).
Inútil. Tudo isso foi inútil. Se eu fosse corajoso, e não esse covarde que se olha ao espelho, teria dito a verdade ao vivo, na TV, e calado os meus colegas. Faria cara de enfado, retiraria o microfone do blazer e diria: "Serra vai perder porque é careca, meninos". E depois abandonaria o estúdio, com passos triunfais, perante o choque geral.
É a verdade. E Simon Carr, o grande jornalista britânico, concorda comigo. Carr não escreveu sobre Serra, mas seu último artigo para a revista "Intelligent Life" (o título diz tudo) é brutal e certíssimo: a partir da década de 60, os carecas desapareceram da política ocidental.
O leitor é um apreciador de Winston Churchill? Esqueça. O monumental estadista que venceu a Segunda Guerra jamais seria reeleito hoje: careca, gordo, fumante, politicamente incorreto -seria trucidado em qualquer eleição.
Escreve Carr que, a partir da década de 60, houve um colapso da autoridade na política. O eleitorado, para lá da competência, passou a valorizar uma outra qualidade: a juventude. Ou, pelo menos, a aparência de juventude. E não existe maior símbolo de juventude que o cabelo.
Na Grã-Bretanha, Alec Douglas-Home foi o último premiê careca. Em 1963. Depois dele, nunca mais houve carecas em Downing Street.
E os que tentaram (como William Hague ou Duncan Smith, ambos conservadores) foram desfeitos pelos trabalhistas. David Cameron quebrou o enguiço, mas cuidado, avisa Carr: Cameron está a perder cabelo; o seu índice de popularidade está a baixar também.
Simon Carr não aplica sua análise a outros países. Aplico eu. Nos Estados Unidos, o último presidente calvo foi Dwight Einsenhower. Em 1953. Gerald Ford é um caso discutível, mas Ford assumiu a presidência depois da demissão de Nixon. Sem passar pelas urnas.
De então para cá, tivemos Carter, Reagan, Bush (pai), Clinton, Bush (filho) e agora Obama. É preciso dizer o que essa gente toda tinha em comum?
Mesmo na Europa, e até em Portugal, a tese de Carr confere: em Portugal, nos últimos anos, jamais tivemos um premiê ou mesmo um presidente da República calvo.
E, na Europa, Berlusconi poderia ser exceção da regra. Isso se Berlusconi não tivesse sofrido as agruras do inferno para implantar cabelo. "Fiz isso por respeito a Itália e aos italianos", disse ele, em comunicação célebre. Itália agradeceu.
O Brasil, não: elegeu Dilma, ou seja, a única candidata com juba de leão. Em 2006 foi a mesma coisa entre Lula e Alckmin.
Para ganhar essa eleição, alguém deveria ter dito a José Serra duas palavras: "implante" ou "peruca". Em política, não é dos carecas que as urnas gostam mais.
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Derrota de Serra: uma explicacao regional (ou geografico-social)
O recado do Nordeste
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Folha de S.Paulo, 2.11.2010
SÃO PAULO - Não foi uma vitória acachapante, como havia sido desenhada. Não foi, tampouco, uma vitória apertada, como ainda acreditavam alguns tucanos na véspera. Dilma Rousseff ganhou com folga, com 12 milhões de votos de vantagem. O Congresso terá composição mais governista do que o atual. Mas há uma oposição visível no país. Só os tucanos governarão oito Estados, entre eles São Paulo e Minas. Não houve, afinal, massacre.
Não houve, vírgula. A compreensão do famoso "recado das urnas" (com a licença do clichê) passa pela consideração do que aconteceu no Nordeste, onde Dilma obteve vitória esmagadora sobre José Serra.
Lá, a petista ultrapassou os 70% dos votos -uma vantagem de 41 pontos sobre o tucano, a quem derrotou em todos os Estados da região. Em números, isso representa 10,7 milhões de votos a mais que do que Serra só no Nordeste. É quase toda a diferença obtida no país.
O resultado discrepa muito do que se passou em outras praças. No Sudeste, por exemplo, Dilma teve 52%, e Serra, 48%. Sabia-se que Minas tinha importância estratégica e peso simbólico. Mas o serrismo exagera e distorce a realidade quando canaliza para o Estado de Aécio Neves o grosso da sua insatisfação.
Serra deve ter razões para espicaçar Aécio; Aécio deve ter ainda mais razões para não mover montanhas por Serra -mas as razões do fiasco tucano vão muito além do café com leite que azedou na xícara.
Dilma derrotou Serra por 58% a 42% no segundo maior colégio eleitoral do país. Mas, mesmo que o tucano tivesse batido Dilma com 80% dos votos em Minas, ainda assim a petista teria vencido a eleição.
Foi o Nordeste que fez a diferença. A votação de Dilma na região foi inferior à obtida por Lula em 2006 (77%), mas superior a que teve em 2002 (61%). Ela exprime, talvez, o novo protagonismo e a autoestima de um pedaço do país que historicamente serviu de cartão postal das nossas piores iniquidades sociais.
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Folha de S.Paulo, 2.11.2010
SÃO PAULO - Não foi uma vitória acachapante, como havia sido desenhada. Não foi, tampouco, uma vitória apertada, como ainda acreditavam alguns tucanos na véspera. Dilma Rousseff ganhou com folga, com 12 milhões de votos de vantagem. O Congresso terá composição mais governista do que o atual. Mas há uma oposição visível no país. Só os tucanos governarão oito Estados, entre eles São Paulo e Minas. Não houve, afinal, massacre.
Não houve, vírgula. A compreensão do famoso "recado das urnas" (com a licença do clichê) passa pela consideração do que aconteceu no Nordeste, onde Dilma obteve vitória esmagadora sobre José Serra.
Lá, a petista ultrapassou os 70% dos votos -uma vantagem de 41 pontos sobre o tucano, a quem derrotou em todos os Estados da região. Em números, isso representa 10,7 milhões de votos a mais que do que Serra só no Nordeste. É quase toda a diferença obtida no país.
O resultado discrepa muito do que se passou em outras praças. No Sudeste, por exemplo, Dilma teve 52%, e Serra, 48%. Sabia-se que Minas tinha importância estratégica e peso simbólico. Mas o serrismo exagera e distorce a realidade quando canaliza para o Estado de Aécio Neves o grosso da sua insatisfação.
Serra deve ter razões para espicaçar Aécio; Aécio deve ter ainda mais razões para não mover montanhas por Serra -mas as razões do fiasco tucano vão muito além do café com leite que azedou na xícara.
Dilma derrotou Serra por 58% a 42% no segundo maior colégio eleitoral do país. Mas, mesmo que o tucano tivesse batido Dilma com 80% dos votos em Minas, ainda assim a petista teria vencido a eleição.
Foi o Nordeste que fez a diferença. A votação de Dilma na região foi inferior à obtida por Lula em 2006 (77%), mas superior a que teve em 2002 (61%). Ela exprime, talvez, o novo protagonismo e a autoestima de um pedaço do país que historicamente serviu de cartão postal das nossas piores iniquidades sociais.
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