quinta-feira, 17 de junho de 2010

Democracia é soberania do eleitor e alternancia de governantes

Um texto analítico, de um jornalista conhecido.

OS DOCES TOTALITÁRIOS
Reinaldo Azevedo
15 de junho de 2010

Vamos a um post que tende a ser um tantinho longo, daqueles que costumo classificar de “textos de formação”, seja porque remetem a algumas questões de princípio deste escriba — a minha própria “formação”, portanto —, seja porque podem ser um instrumento a mais a auxiliar o leitor nas suas escolhas. Vamos lá.

Dos princípios
Estou certamente entre os articulistas mais — à falta de melhor palavra, vai esta mesmo — “transparentes” da imprensa. Os leitores sabem o que penso. Ninguém pode se dizer enganado ao entrar nesta página: “Ah, pensava que você fosse outra coisa…” Então é porque não tinha lido direito. As esquerdas de modo geral— e esse bolchevismo à moda Sarney do PT em particular — não têm por que se animar comigo. Se me lêem, e como lêem!, é para ter uma chance a mais de secretar o seu fel. Há quem não consiga viver sem destilar algumas doses diárias de ódio. Questão de gosto.

Qual é a minha escolha em política? É a que preserva ou que faz avançar aqueles que considero valores inegociáveis da democracia. Quando estrilo aqui, ainda que quase sempre com bom humor, é porque avalio que o padrão democrático está sendo ou pode ser arranhado. Os textos estão em arquivo aos milhares. Basta fazer uma consulta.

A minha mais recente cruzada — bem-sucedida, ainda que não inteiramente vitoriosa porque há muita porcaria lá — foi contra o tal Plano Nacional-Socialista dos Direitos humanos, com suas agressões ao direito de propriedade, à Justiça, à imprensa e às liberdades públicas. Enxerguei lá a síntese do modo petista de trabalhar. Escrevi dezenas de textos a respeito porque não gosto do PT? Posso não gostar como conseqüência das escolhas que o partido faz, não por um capricho. Se eles experimentarem aderir à democracia pra valer, aí vamos ver como me comporto. Mas ninguém terá a chance de ver tal hipótese testada na prática.

Eles querem controlar a sociedade, submetendo a Constituição à arbitragem de grupos de pressão; eu a quero soberana, articulada com leis democraticamente votadas. Não há chance de conciliação. No mundo deles, um partido se impõe à sociedade; no meu mundo, a sociedade se impõe aos partidos. E essa minha escolha pauta, evidentemente, muitas outras; leva-me a fazer escolhas.

Lulocentrismo
Chega a ser escandaloso que Lula diga que a cédula eleitoral tem um vazio desde a redemocratização: seu nome não está lá. E que emende: ele agora se chama “Dilma”, tomando-se como o senhor absoluto da política. “Ah, essa é uma posição que ele conquistou democraticamente”, poderia dizer alguém. Pois é: os princípios elencados acima, então, começam a fazer diferença.

Lula foi eleito e reeleito não para subordinar a democracia a seus caprichos — ainda que ela permaneça com seus mecanismos formais intocados —, mas para se subordinar a ela, promovê-la, aperfeiçoá-la. Esse cesarismo tropical é uma derivação teratológica, doente, do embate democrático.

As palavras têm sentido, mesmo quando pronunciadas por Lula. Ele está nos dizendo, em suma, que poderia ter escolhido quem bem entendesse; fosse quem fosse o ungido, e os brasileiros estariam, a seu juízo, referendando o nome indicado. Lula dá um pé no traseiro de 130 milhões de eleitores e afirma a existência de um eleitor só: ele próprio. No mesmo discurso, como vimos, atacou a oposição, que é vítima de dossiês que circulam na petezada, e a imprensa — que, não obstante, têm contribuído para a criação desta nova categoria política e de pensamento: o lulocentrismo.

Ataque à democracia
Esse lulocentrismo, especialmente na crônica política, chega às raias da negação da própria política e do regime democrático. Não é raro — de fato, é muito freqüente — que esbarremos em textos que ficam muito perto de indagar como um candidato de oposição se atreve a disputar eleições se o governo Lula é tão popular. Notável contradição esta, que nasce da contaminação do pensamento por teses muito antigas, de filiação obviamente autoritária, quando não totalitária mesmo.

Ora, por que a democracia é um regime superior a qualquer outro? Porque ela dispõe de instrumentos para vigiar o poder e para substituir o governante — por meio das urnas ou da Justiça. Também está provado que é o único regime que consegue aliar liberdades púbicas públicas a qualidade da gestão. Não havendo qualidade, as tais liberdades se encarregam de fazer a troca, ou no tempo previsto do pleito seguinte ou em razão de algum outro mecanismo legal.

A estarem certos alguns coleguinhas “analistas”, a democracia que conduz à qualidade de gestão anularia a si mesma à medida que um governo aprovado pela maioria caminharia para a eternização, ainda que preenchendo o “vazio” da cédula por um mero avatar do governante popular. Não creio que José Serra ou mesmo Marina Silva estejam na disputa em razão de uma função, sei lá, meramente fática do processo democrático; apenas para justificar a sua existência. Ambos têm propósitos distintos do governo que aí está e devem se considerar mais preparados do que a sua adversária governista.

Mas também é inegável que é a existência de uma oposição no pleno exercício de suas prerrogativas, em condições de vencer uma eleição, que distingue um regime democrático de um regime autoritário. A eficiência não faz uma democracia, como bem sabe a China, por exemplo. Não se duvide: aquele é um governo que “funciona” e que realizou pelo “povo” prodígios numa escala que nem podemos imaginar por aqui. O país tirou da miséria uns 400 milhões de pessoas nos últimos 20 anos. E, não obstante, trata-se de uma ditadura feroz.

Povo teimoso
A análise, com alguma freqüência, se deixa contaminar pela propaganda e pelo bordão “nunca antes na história destepaiz”, repetido, com pequenas variações, na propaganda oficial do governo, na publicidade das estais e até nas mensagens publicitárias de empresas privadas. Nesse contexto, a chance de alternância de poder passou a ser tratada como um exotismo, como um absurdo, como falta de coerência: “Afinal, se eles estão contentes e aprovam o governo, por que votariam num candidato de oposição?”

Os eleitores têm insistido em desapontar os analistas. A disputa, na maioria das pesquisas, está empatada entre Serra e Dilma. É bem possível que os eleitores do tucano não reconheçam nele alguém disposto a desfazer tudo o que está aí, no que estão certos. Pode mesmo haver quem considere que as melhores chances da continuidade das melhorias estão na mudança.

Elemento estranho ao jogo — ao jogo da democracia ao menos — é satanizar a alternância; é supor que há uma contradição inelutável entre aprovar o governo e eleger um eventual opositor. Não na democracia!!! Contraditório com o regime democrático é supor que o normal — ou desejável — é que um governo popular simplesmente homologue o seu sucessor. É a oposição que faz o governo ser governo; é o governo que faz a oposição ser oposição. Eles são protagonistas da mesma narrativa; a história de um não pode ser contada sem a história do outro. Ou estaríamos numa ditadura, ainda que muitos a pretendessem virtuosa.

E não há ditaduras virtuosas.

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