Entre o céu e o inferno
Ruy Fabiano - jornalista
O Globo, 26.06.2010
A presente eleição exibe uma singularidade: o candidato principal não está na disputa. É o presidente Lula. Ele mesmo não fez cerimônia quanto a isso. Disse que o “vazio da cédula” será preenchido com o nome de Dilma Roussef, mas o candidato é ele.
Nenhum antecessor, em qualquer época, portou-se assim. Os paradigmas mais próximos são as eleições chilenas e as colombianas. Mas nenhum dos dois presidentes – Michele Bachelet e Alvaro Uribe -, embora ostentassem índices de popularidade até superiores aos de Lula (Bachelet deixou o governo com 84% e Uribe com 82%, enquanto Lula tem 76%), agiram com a mesma contundência.
Nenhum disse que ele próprio era o candidato, e o sucessor um poste. Dilma resigna-se ao papel, pois sabe que, em outras circunstâncias, não teria chances. O que não se sabe – e as pesquisas estão longe de esclarecer – é a consistência dessa estratégia.
No Chile, não funcionou; o candidato de Michelet perdeu. Na Colômbia, funcionou; o de Uribe ganhou. Em ambos, a população estava, como aqui, satisfeita com o governo.
Mas no Chile, com instituições estáveis e economia sólida, o eleitor não viu perigo na mudança. Na Colômbia, atormentada pelo narcotráfico, viu. E elegeu o personagem da continuidade, exatamente o encarregado de combater as Farcs, o ministro da Defesa, general Juan Manuel Santos.
O quadro brasileiro mistura um pouco as duas coisas: tem instituições razoavelmente estáveis e economia em alta, como o Chile; mas vive os tormentos da criminalidade, como a Colômbia. O narcotráfico mata 50 mil pessoas por ano, a maioria jovens e pobres.
É o equivalente a cem vezes o total de mortos nos 21 anos de ditadura militar – e isso por ano. O eleitor convive com um cenário paradoxal: de um lado o cenário de prosperidade que a máquina de propaganda do governo lhe exibe diariamente na mídia; de outro, o noticiário policial da mesma mídia. Entre o céu e o inferno.
O governo ancora seu discurso na prosperidade e, a partir dela, fala dos outros temas: saúde, educação, emprego, desenvolvimento. A oposição, sem êxito, diz que pode mais. Prefere disputar votos no que está dando certo, avalizando o cenário de bem-estar que o governo proclama. Despreza, até aqui, o potencial do mal-estar social que convive nessa conjuntura.
O máximo que fez foi propor a criação de um Ministério da Segurança, sem aprofundar as deficiências que o justificam e como se propõe a supri-las. E há reflexos contundentes da ação da rede criminosa continental, que tem nas Farcs um de seus pilares, em segmentos como saúde pública e educação.
As relações do governo brasileiro com aquela entidade, que vive do roubo de gado, venda de drogas (sobretudo para o Brasil) e sequestro de pessoas (com campos de concentração na selva amazônica) são ainda nebulosas, para dizer o mínimo.
Jamais houve uma condenação explícita. Ao contrário, Lula sugeriu que se transformassem em partido político e Marco Aurélio Garcia recusa-lhe o rótulo de organização terrorista, atribuído por Estados Unidos e União Europeia.
É um flanco em aberto que explica a porosidade da fronteira boliviana, mencionada de passagem por Serra, de onde procedem 90% da cocaína vendida ao Brasil, aqui processada e revendida pelo tráfico. Por aí, chega-se aos 50 mil brasileiros assassinados anualmente, o que caracteriza uma guerra civil silenciosa – ou nem tanto.
sábado, 26 de junho de 2010
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