Não tanto do PT, quanto de alguns expoentes do governo Lula, como o Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Nelson Barbosa.
Abaixo uma exposição sintética de suas teses principais.
PRA
A superação de dogmas
Claudia Safatle
Valor Econômico, 5.03.2010
Quando, em novembro de 2005, a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, classificou de rudimentar a discussão sobre um plano de ajuste fiscal de longo prazo, selou o fim da chamada hegemonia neoliberal que marcou os três primeiros anos do governo Lula. A partir daí, à política macroeconômica pautada pelo tripé regime de metas da inflação, câmbio flutuante e superávit primário das contas públicas agregam-se ingredientes desenvolvimentistas basicamente em três frentes: aumento das transferências de renda aos mais pobres e elevação real do salário mínimo; elevação do investimento público; e a recuperação do papel do Estado no planejamento de longo prazo.
Àquela altura o comentário de Dilma, hoje candidata à sucessão de Lula, desautorizou as iniciativas de dois ministros: o do Planejamento, Paulo Bernardo, e o da Fazenda, Antônio Palocci, este em situação já frágil, que contavam com ajuda do então deputado e ex-ministro Delfim Netto. Palocci era suspeito de envolvimento na quebra do sigilo do caseiro Francenildo dos Santos Costa. Paralela à crise do mensalão do PT, as incursões de amigos do então ministro em negócios duvidosos e tráfico de influência levaram à sua saída do governo em abril de 2006.
O ano de 2003, o primeiro da gestão Lula, foi de apertos fiscal e monetário. Em 2004, começa o crescimento mais acelerado do PIB, que chegou a 5,7% e exigiu o aumento dos juros em 2005 para cortar os excessos da demanda. A resposta sugerida pelos liberais do governo, naquele momento (que era de alta tensão política), foi reforçar a dosagem do remédio neoliberal: redobrar o esforço fiscal com o aumento do superávit primário e a meta de zerar o déficit nominal em cinco anos, o que reduziria os juros e aumentaria o investimento privado.
Seria uma contração fiscal expansionista. A ela se associaria um processo mais rápido de desinflação. O governo teria que reduzir a meta de inflação de 2007 para algo inferior a 4,5%. Até então, a manutenção do tripé da política macroeconômica vinda do governo anterior tinha sido importante para demonstrar que o governo do PT não buscaria soluções mágicas para os velhos problemas.
A proposta neoliberal de novos ajustes recessivos acabou fortalecendo a visão desenvolvimentista sobre a política econômica ao fim de 2005, conta Nelson Barbosa, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, no livro Brasil entre o Passado e o Futuro. Barbosa escreveu, com José Antônio Pereira de Souza, economista do BNDES hoje na Fazenda, o texto A Inflexão do Governo Lula: Política Econômica, Crescimento e Distribuição de Renda, publicado no livro organizado pelo PT para a convenção que consagrou Dilma candidata à Presidência da República.
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ex-funcionário do Banco Central, Barbosa trabalhou com Guido Mantega no BNDES. Mudou-se para Brasília quando Mantega foi designado para substituir Palocci e é, hoje, o mais influente economista não ortodoxo do governo. Participou intensamente da campanha pela reeleição de Lula, ganhou a confiança de Dilma e a simpatia do presidente.
O texto de 42 páginas é uma descrição do legado de Lula até agora, colocada em uma perspectiva teórica, de escolhas que foram feitas ainda que sem formulação sistemática. Até porque os desenvolvimentistas presentes no governo não dispunham de caráter teórico e ideológico coeso como os neoliberais, explica. Esse trabalho se complementa, porém, com outro documento: Uma Nova Política Macroeconômica e Uma Nova Política Social, resultado de seminário realizado na Fundação Perseu Abramo.
Barbosa encaixa os fatos numa perspectiva histórica, aponta o momento da inflexão e discorre sobre as idas e vindas do crescimento e da inflação. Divide os sete anos de gestão Lula em dois períodos claros: 2003-2006, quando a predominância neoliberal assegurou a retomada dos controles monetário, cambial e fiscal depois do ataque especulativo que precedeu as eleições de 2002; e 2006-2009, quando, sem abandono do tripé, entrou em cena certo desenvolvimentismo pragmático, que não reflete uma escola de pensamento econômico homogênea. Descreve as ações para enfrentar o crash de 2008 e conclui que Lula superou aparentes verdades preestabelecidas, rompeu com dogmas e, como acontece em raros momentos da história, validou alternativas que agora podem se tornar consensuais.
Como em praticamente todos os governos contemporâneos do Brasil, houve, na gestão Lula, a reedição da eterna dicotomia entre economistas ortodoxos e não ortodoxos. Em última análise, pregam caminhos distintos para se chegar ao nirvana do crescimento sustentável com distribuição da renda e delegam papéis diferentes para o Estado nesse processo. Lula administrou os extremos, segundo Barbosa, e buscou compatibilizar objetivos aparentemente antagônicos: O controle da inflação com aceleração do crescimento, na política monetária; câmbio flutuante com acumulação de reservas internacionais, na política cambial; e equilíbrio orçamentário com aumento do gasto social na política fiscal, relata no texto relacionado ao seminário da Fundação Perseu Abramo. É aí que reside a arte e o sucesso da atual política macroeconômica, atribui.
No segundo mandato, os não ortodoxos ganharam espaço para tentar sair da armadilha do baixo crescimento. Frequentemente uma casca de banana que se joga para economistas heterodoxos ou não ortodoxos é a acusação que eles aceitam um pouco de inflação para ter mais crescimento. Na verdade não é isso, o Brasil é uma prova. A verdadeira escolha na política monetária é a velocidade de redução da inflação, ou seja, o quão rápido ou devagar você fará a inflação convergir para a meta estabelecida, diz. A partida para crescimento maior, em geral, gera tensões inflacionárias mas, no momento em que se atinge taxa mais elevada e se permanece nela, a economia se ajusta e a inflação cai novamente, completa.
É com base nesse raciocínio que ele explica por que mesmo quando era razoável o governo baixar a meta de inflação, ela permaneceu em 4,5%. E coloca um elemento polêmico no debate: É possível você ter um controle de inflação e ainda assim ter uma meta, como teve nos últimos anos, de aceleração do crescimento mantendo a inflação sob controle.
Os desenvolvimentistas não defendiam crescimento a qualquer preço, explica, mas acreditavam que o país poderia acelerar em um ou dois pontos percentuais o crescimento econômico além do que os neoliberais preconizavam - por um temor quase religioso à suposta barreira estimada para o produto potencial - com base em estímulos monetários e fiscais. E que era possível optar pelo crescimento com inclusão, sem que fosse preciso abdicar da estabilidade.
Foram três as iniciativas fiscais tomadas em 2006, aliadas à forte expansão do crédito, que definiram essa transição: conceder aumento real médio de 14,1% para o salário mínimo, que ajudou a estimular o mercado doméstico; retomar os investimentos públicos e ampliar as desonerações tributárias; e atender a demanda reprimida por novas contratações e por aumentos salariais para o funcionalismo público. Além disso, a meta de inflação permaneceu inalterada por todo o mandato do presidente Lula em 4,5% para evitar que a política monetária abortasse a decolagem da economia.
Ainda em 2006, diante das boas condições internacionais, da redução do endividamento externo do governo e da apreciação do real, o Banco Central começou a comprar reservas cambiais, atuação que se acentuou em 2007. Estas, que somavam US$ 55 bilhões em 2005, subiram para US$ 241 bilhões atualmente. As elevadas reservas formaram um colchão de segurança, reduzindo a vulnerabilidade externa que abatia o país quando os mercados internacionais entravam em turbulências.
O crescimento do mercado de crédito, com a criação do sistema de crédito consignado para bens de consumo, foi impressionante nesse período. Entre dezembro de 2005 e dezembro de 2009, o volume do crédito livre mais que dobrou, de R$ 403 bilhões para R$ 953 bilhões. À medida que a opção pelo desenvolvimentismo foi ficando mais clara, ocorreu uma aceleração substancial do crescimento econômico do país, diz o texto do livro. A média anual do PIB, de 3,2% entre 2003 e 2005, subiu para 5,1% entre 2006 e 2008.
A inclusão social, com o aumento das transferências de renda e a elevação do valor real do salário mínimo, assim como a expansão horizontal do crédito, tornaram evidentes as possibilidades do crescimento sustentado pelo mercado interno e na expansão da demanda agregada. Havia, agora, um mercado de consumo capaz de sustentar um ciclo de crescimento. Isso deslocou o eixo da política econômica do país de maneira que os constrangimentos (reais e imaginários) das décadas anteriores pudessem ser, afinal, superados.
Nesse contexto, foi fundamental a recuperação da postura mais ativa do Estado na promoção do desenvolvimento econômico, assinala. O desequilíbrio e a incerteza, inerentes ao crescimento econômico, demandaram um papel indutor e regulador mais consciente do Estado, especialmente na formatação das expectativas de investimento para o longo prazo, diz o texto. Isso, acrescentam os autores, implicou assumir responsabilidades que a hegemonia neoliberal considerava alheias às esferas de atuação do Estado.
O primeiro sinal de que o governo assumiria compromissos com os investimentos públicos foi a operação emergencial tapa-buracos nas rodovias federais, de R$ 440 milhões em 2006. Cifra que, embora modesta, estabeleceu um marco nas prioridades orçamentárias que se consolidou no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), de janeiro de 2007, afirmam. O mérito do PAC foi garantir os recursos orçamentários para o aumento dos investimentos públicos (que passaram de uma média de 0,4% do PIB em 2003-2005 para 0,7% do PIB de 2006-2008) e estimular os investimentos privados.
A crise global de setembro 2008 produz forte contração do crédito externo ao país e consequente e abrupta retração do crédito doméstico; além da saída de capitais externos, desaceleração das exportações brasileiras e depreciação do real. Uma mistura de problemas que gerou recessão técnica na economia, entendida como dois trimestres consecutivos de queda do produto.
O governo respondeu ao crash internacional com uma bateria sem precedentes de medidas, contam. Pela primeira vez na história recente, o governo adotou um conjunto de ações anticíclicas, destinadas a preservar o sistema financeiro nacional e a recuperar o mais rápido possível o nível de atividade.
Foram, segundo Barbosa, três grupos de medidas: as programadas antes e independentes da crise global - como a rede de proteção social e o aumento dos investimentos públicos e dos salários do funcionalismo; as ações emergenciais - prover liquidez ao sistema financeiro, em moeda local e em dólares, reduzir os depósitos compulsórios, criar financiamento de curto prazo às exportações e desonerar uma série de setores, num pacote que injetou 3,3% do PIB no mercado bancário em 2008; e medidas estruturais - providências que seriam adotadas no futuro foram antecipadas para combater os efeitos do crash, como o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida, dirigido para a população mais pobre, e a criação de alíquotas intermediárias no Imposto de Renda da Pessoa Física, benefício para a classe média.
Os bancos públicos assumiram uma política ativa de expansão do crédito e como emprestadores de penúltima instância, já que o banco central não podia atuar como emprestador de última instância para o setor privado não financeiro. O atraso da política monetária em estimular a recuperação econômica foi compensado pela política fiscal, salientam os autores. O BC, que começou a elevar a taxa de juros Selic em abril de 2008 e fez derradeiro aumento em setembro, poucos dias antes do crash, só começou a reduzir os juros em janeiro de 2009, embora o nível de atividade tenha mergulhado após outubro.
A política monetária anticíclica incluiu, igualmente, corte substancial na taxa Selic, mas isso ocorreu somente quando o temor do BC sobre o impacto inflacionário da depreciação do real cedeu espaço à preocupação generalizada do governo com a queda abrupta do nível de atividade econômica. Os juros caíram de 13,75% para 8,75% e os efeitos dessa redução sobre o crescimento estão em curso este ano. Na questão dos juros reais, Barbosa tem avaliação interessante. Acha que um dos efeitos da crise global pode ser a redução permanente do patamar de taxa real de juros no Brasil.
Parte do corte dos juros em 2009 foi temporária, fruto do baque recessivo decorrente de setembro de 2008 e da depreciação do real, explica. Mas outra parte pode ser um ganho permanente. Em números, antes do crash global, os juros reais no país rondavam entre a faixa de 7% a 9%. Caíram de imediato para 5% no auge da crise e devem flutuar, nos próximos anos, no intervalo de 5% a 7%.
Embora considere uma avaliação incompleta dos dois mandatos do governo Lula, até porque há nove meses pela frente, Barbosa conclui que esse foi um período de experimentação responsável que mostrou que o país tem grande capacidade de escapar das limitações autoimpostas.
A superação de dogmas, diz ele, encontra paralelos na história nos momentos em que os Estados das economias capitalistas centrais optaram por romper com seus modelos de atuação, colhendo crescimento econômico subsequente e constituindo arcabouço de bem-estar. Foi assim, cita, com a GI Bill of Rights, em 1944, e com o Employment Act, em 1946, do governo americano, assim como na estruturação do Estado do bem-estar britânico no pós-guerra. Foi assim também com o Estado desenvolvimentista de Getúlio Vargas e com o desenvolvimento acelerado do Plano de Metas de JK. Cabe aos governos, escreve Barbosa, testar os limites sem se fazer refém de axiomas e modelos que negam, a priori, políticas macroeconômicas inclusivas.
Os dois textos citados foram escritos no fim de 2009. O livro traz, ainda, uma entrevista com a candidata à Presidência da República pelo PT e artigos de expoentes do PT, como Marco Aurélio Garcia, Emir Sader e Márcio Pochman, entre outros. Um elemento comum a todos é a necessária recomposição do Estado.
Independentemente de se concordar ou não com a linha condutora dos pensamentos, trata-se, sem dúvida, de leitura necessária para quem deseja compreender os fundamentos e, não raro, o pragmatismo, do governo Lula.
sexta-feira, 5 de março de 2010
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