Em qualquer país normal, o que vem descrito abaixo se chamaria tráfico de influência, e seria reprimido pelos mecanismos de controle de um sistema democrático, transparente, dotado de boa governança.
No Brasil, isso passa por sucesso.
O que mostra o quão corrompido, moralmente, o país se tornou...
Paulo Roberto de Almeida
O segundo Dirceu
Leandro Loyola, de Cruzeiro do Oeste (PR)
Revista ÉPOCA, 03/07/2010
Com acesso a gabinetes e recursos em Brasília, Zeca, o filho de José Dirceu, prepara-se para sair do Paraná e suceder o pai na Câmara dos Deputados
José Carlos Becker de Oliveira e Silva aparenta ser mais novo que seus 32 anos. É alto, cerca de 1,90 metro, magro, tem os cabelos claros, é solteiro e pai de uma filha. José Carlos é um bem articulado candidato a deputado federal pelo PT no Paraná. Ele mantém um blog, um programa semanal de rádio chamado Caminhos do noroeste, faz política intensamente pelo Twitter e comparece todos os dias a eventos em cidades do noroeste do Paraná. Mas não gosta de entrevistas. “Eu não sou uma figura nacional. Meu pai é quem é”, disse José Carlos a ÉPOCA há duas semanas, em um seminário sobre agricultura familiar em Paranavaí. “Meu mundinho é isso aqui.” José Carlos é conhecido como Zeca Dirceu, filho do ex-ministro José Dirceu. Mas o “mundinho” de Zeca Dirceu é mais vasto do que ele gostaria de admitir.
Ex-prefeito de Cruzeiro do Oeste, cidade de 20 mil habitantes do noroeste paranaense, Zeca Dirceu é apontado pelos concorrentes como um candidato forte a deputado. Por um motivo simples: mesmo sem ter broche espetado na lapela do terno, gabinete ou assento na Câmara, em Brasília, Zeca tem mais acesso a ministros e burocratas influentes no governo federal que muitos deputados. Durante seu mandato como prefeito de Cruzeiro do Oeste, Zeca obteve cerca de R$ 14 milhões em verbas federais – valor significativo para um município pequeno. Zeca é conhecido na região por ajudar outros prefeitos a chegar aos gabinetes em Brasília. Só no ano passado, segundo aliados, Zeca obteve R$ 13 milhões em verbas federais para 37 cidades da região. “Mesmo não sendo deputado, ele tem muito acesso em Brasília, nos ministérios”, afirma Edno Guimarães, prefeito de Cianorte, cidade três vezes maior que Cruzeiro do Oeste. “Não sei se é apoio do pai, mas ele consegue (verbas).” Segundo Guimarães, Zeca o levou a encontros com os ministros Reinhold Stephanes (Agricultura), Paulo Bernardo (Planejamento), Alfredo Nascimento (Transportes) e Hélio Costa (Comunicações). Como obter verbas é fundamental para a sobrevivência de um deputado, Zeca está no caminho certo.
O empresário Moacir Silva (PDT) é prefeito de Umuarama, uma das maiores cidades da região de Zeca, com 115 mil habitantes. Silva afirma que foi procurado por Zeca Dirceu em 2009. “Ele se colocou à disposição para conseguir verbas”, diz Silva. Dono de uma imobiliária e uma construtora, Silva pretende construir 3 mil casas populares em Umuarama. “Ele (Zeca) disse: ‘Eu consigo alguma coisa, especialmente no Ministério das Cidades’”, afirma Silva. Em fevereiro, Silva recebeu uma ligação de Zeca. “Ele disse: ‘Eu estou no ministério e vamos dirigir R$ 1 milhão para a cidade.” Segundo Silva, a verba já está disponível. Outro R$ 1 milhão chegará em agosto.
Nos últimos meses, os jornais do noroeste do Paraná publicaram mais de 60 reportagens sobre realizações desse tipo atribuídas a Zeca. Uma delas trazia uma lista com os nome das cidades, os valores liberados e o órgão federal responsável pelos recursos. No mês passado, o Partido Republicano Progressista (PRP) protocolou no Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Paraná uma representação contra Zeca Dirceu por campanha antecipada. A ação cita como irregularidades a divulgação da intermediação de verbas federais por Zeca. Para o PRP, seria campanha publicitária disfarçada. O rosto de Zeca também apareceu em outdoors que divulgavam seu programa de rádio. Ao lado do título “O brilho de Zeca”, uma foto do filho de José Dirceu estampou a capa de uma edição recente de uma revista da região. Outdoors de divulgação da revista foram espalhados na região. O PRP denunciou ainda a “showmissa” realizada na festa de despedida de Zeca do cargo de prefeito de Cruzeiro do Oeste, em março. O show foi feito pelo padre Reginaldo Manzotti, sucesso no mercado de música religiosa. No convite, postado em seu blog pessoal e enviado a partir de seu e-mail, Zeca dizia que o evento marcaria sua saída da prefeitura para “colocar meu nome como pré-candidato a deputado federal”. No dia da festa, Zeca afirmou em anúncio que, apesar de todas as aparências, o evento não seria pago por ele ou pela prefeitura e nem faria referência a sua campanha. A ação protocolada pelo PRP ainda não foi julgada pelo TRE.
Zeca investe em conquistar votos na base eleitoral de Osmar Serraglio, relator da CPI dos Correios em 2005
Administrada por Zeca Dirceu entre 2005 e março deste ano, Cruzeiro do Oeste é uma cidade pacata. Algumas casas de uma de suas principais avenidas têm hortas nos quintais. As avenidas são cortadas por ruas de terra avermelhada batida. De vez em quando, tratores e charretes passam entre os carros. Nesse cenário bucólico, chamam a atenção os canteiros de obras, os equipamentos públicos novos, como praças e um centro de saúde, e as placas de divulgação do governo federal, especialmente dos ministérios das Cidades e do Turismo. Em cinco anos, o Ministério das Cidades liberou cerca de R$ 5 milhões para a cidade. O Ministério do Turismo investiu R$ 189 mil na reforma de um salão de convenções e R$ 231 mil em um barracão. Por meio de sua assessoria, o ministro do Turismo, Luiz Barretto, afirma que “conhece o ex-prefeito Zeca Dirceu e já teve a oportunidade de recebê-lo em seu gabinete assim como recebeu tantos outros agentes públicos”. O Ministério das Cidades disse que o ministro Márcio Fortes “recebe senadores, deputados e prefeitos”.
O eleitorado de Cruzeiro do Oeste não é suficiente para eleger Zeca deputado federal. Por isso, sua pré-campanha envolve dezenas de outras cidades. Um de seus focos é Umuarama, base eleitoral do deputado federal Osmar Serraglio (PMDB). Recentemente, Zeca levou o pai, José Dirceu, a um evento numa universidade em Umuarama. “Ele insiste na cidade porque precisa de um município com densidade (eleitoral)”, diz Osmar Serraglio. Por coincidência, Serraglio foi o relator da CPI dos Correios, aquela que investigou o escândalo do mensalão em 2005 e levou à cassação do pai de Zeca.
Zeca Dirceu nasceu em 1978. É filho de José Dirceu com Clara Becker. Em 1975, o ex-líder estudantil José Dirceu havia voltado clandestinamente do exílio em Cuba e foi viver em Cruzeiro do Oeste sob o nome falso de Carlos Henrique Gouveia de Melo. Em 1979, após a Lei da Anistia, José Dirceu revelou a Clara sua verdadeira identidade, aposentou Carlos Henrique e voltou para São Paulo. Os documentos do pequeno Zeca tiveram de ser trocados, para que ele assumisse o verdadeiro sobrenome. Procurado por ÉPOCA, José Dirceu disse por sua assessora que não poderia dar entrevista por falta de tempo.
Zeca entrou para a política quando José Dirceu era o ministro mais poderoso do governo Lula. Uma ação de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público Federal, em 2005, acusa José Dirceu, quando estava na Casa Civil da Presidência, de ter usado a máquina do governo para ajudar a eleger o filho prefeito em 2004. A ação dos procuradores afirma, com base em depoimentos de funcionários do governo, que em 2003 e 2004 o então assessor Waldomiro Diniz agendava reuniões com ministros e autoridades do governo para Zeca tratar de pedidos dos municípios do noroeste do Paraná. Diniz também teria acompanhado a liberação de verbas. O Ministério Público encontrou planilhas de órgãos como a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) que mencionavam verbas associadas às iniciais “JCB”, atribuídas a “José Carlos Becker”, o nome de Zeca Dirceu. A Justiça rejeitou a ação em primeira instância, mas o Ministério Público recorreu. O caso está atualmente sob a análise do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1).
Zeca Dirceu mostra desenvoltura também ao transitar na iniciativa privada. Uma reportagem publicada em fevereiro por um jornal de sua região afirmava que, graças a Zeca, a Oi, a maior operadora de telefonia do país, apoiaria a Associação de Futsal de Umuarama com um patrocínio de R$ 1 milhão. O dinheiro seria dividido entre o time de futsal, que disputa a Liga Nacional, e um projeto social. A reportagem trazia uma foto de Zeca e de Edivanilson Romeiro, o presidente da Associação, ao lado de Otávio Marques de Azevedo, presidente do grupo Andrade Gutierrez S. A., um dos controladores da Oi. “Eles não têm apoio da Oi”, afirmou Azevedo a ÉPOCA. “Eles estão se habilitando.” A primeira reunião aconteceu em 8 de fevereiro, no escritório de Azevedo, em São Paulo. Segundo Azevedo, Zeca foi avisado de que a Oi só apoia projetos amparados por leis de incentivo.
A associação entrou com um pedido no Ministério dos Esportes para ter direito a captar R$ 1,2 milhão. O trâmite foi relativamente rápido: no dia 28 de abril, a liberação foi publicada no Diário Oficial da União. No dia 18 de junho houve novo encontro na Oi, em São Paulo. Azevedo afirma que não encontra o pai de Zeca, o ex-ministro José Dirceu, “há muito tempo”. “Ele não me pediu para receber o Zeca”, diz. “Eu recebo prefeitos do país inteiro.”
Quando foi procurado por ÉPOCA, em Paranavaí, Zeca recusou a conversa, disse que não admitia “insistência” e se despediu. Um veículo utilitário esportivo, com um adesivo com seu rosto e o endereço de seu site colado no vidro traseiro, o esperava. Segundo sua assessoria de imprensa, Zeca decidiu só dar entrevistas à “mídia local” há cinco anos, porque teria sido “maltratado pela mídia nacional”. Perguntado se daria entrevistas se fosse eleito deputado, quando seria uma “figura nacional”, Zeca Dirceu disse: “Aí eu serei obrigado”. Se isso acontecer, Zeca terá de admitir que seu mundinho cresceu.
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