A trilha da esperteza
Alon Feuerwerker
Correio Braziliense, 14.01.2010
A principal diferença entre a democracia representativa e a democracia direta, ou participativa, é que desta última participa menos gente
Fica cada vez mais evidente que o governo cometeu uma bobagem política daquelas quando lançou esta terceira versão (a primeira dele) do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). A quem discorda, afirmando ser só um documento de (boas) intenções, sempre é adequado recordar que delas está cheio o inferno.
Os que fizeram o PNDH conseguiram uma façanha: qualquer um que procura encontra ali alguma coisa que incomoda muito. Daí que o programa tenha esta incrível capacidade catalítica de agregar resistências.
No mínimo, o governo abriu um caminho para a oposição fora do terreno no qual ela vinha encontrando mais dificuldades: a economia. Não que a maioria da população se mobilize por temas como os do PNDH, mas este oferece um ponto de aglutinação política para as forças oposicionistas. Estimulou pela enésima vez, no pedaço da sociedade que se interessa pelo assunto, a discussão sobre os reais propósitos democráticos do PT.
No atual estágio de autossuficiência e salto alto, o petismo irá argumentar que o povão não está nem aí, e que na hora “h” a popularidade de Luiz Inácio Lula da Silva dará um jeito. Aliás, o prestígio de Lula vai virando panaceia, remédio para todos os males, fonte para todas as curas, curativo para todas as incompetências. Não deixa de representar curiosa regressão intelectual num partido nascido do basismo e do desejo de protagonismo coletivo dos trabalhadores, mas tem a ver com os fatos.
O PT continua incapaz de entender, na essência, por que a maioria da sociedade brasileira está longe de apoiar o programa estratégico da legenda. Como portador da verdade e instrumento autonomeado de salvação coletiva, vê nessa resistência apenas um transtorno acidental a contornar. Daí que no discurso petista o líder tome o lugar do sistema político e a “sociedade organizada” dê um chega pra lá na representação eleitoral nascida das urnas.
Se não há maneira de convencer facilmente a maioria, que ela dê lugar a outra, idealizada e desenhada conforme as conveniências. Aí entra a democracia participativa. Não vou discutir o conceito, mas os fatos. Na prática, resume-se a isto: dar aos mobilizados em torno de certo tema o privilégio de definir a posição do conjunto da sociedade sobre esse tema.
Qual é a principal diferença, na prática, entre a democracia representativa e a democracia direta, ou participativa? É que desta última participa menos gente. Por isso, ela só deveria ser acessória, secundária, subordinada. Nunca a principal.
O governo diz que o PNDH nasceu de uma conferência nacional de direitos humanos. E daí? Quantas pessoas se envolveram nela? É a transposição para a grande política de certos (maus) métodos do movimento estudantil, ou sindical. Um punhado decide pelo todo. E decide qualquer coisa.
O leitor poderá argumentar que a discussão terá necessariamente que passar pelo Congresso Nacional, mas não é disso que se trata. Pela abrangência e profundidade, o PNDH é quase um programa de governo. O certo então seria apresentá-lo numa campanha presidencial, para abrir espaço efetivo de debate e confronto de ideias.
Mas como nem o petista mais fanático acredita que dá para ganhar a eleição carregando nas costas um fardo assim, a coisa segue a trilha da esperteza: a campanha presidencial é planejada para correr como exercício de mistificação e infantilização, como desfile de musiquinhas, sorrisos, advertências e generalidades. Para que, depois, liberados do constrangimento temporário de buscar o voto do eleitor, possam realizar o sonho de finalmente colocar a mão na massa e preparar o bolo.
Como diz o ditado, não tem o menor risco de dar certo.
Um argumento do PT em defesa do seu PNDH é que Fernando Henrique Cardoso também fez o dele. O do PSDB passou em branco e o do PT gera polêmica. Não é pela diferença no conteúdo. É porque as pessoas temem no PT certas coisas que no PSDB, todo mundo sabe, são só para inglês ver.
Mais incrível é o petismo precisar defender-se usando como escudo uma “herança bendita” de FHC. Sete anos depois, eis o PT pedindo clemência pois, afinal, “só estamos continuando o que o Fernando Henrique já começou”.
Se não fosse trágico, seria cômico. Se não houvesse outros sinais de isolamento político, esse seria suficiente.
quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
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