terça-feira, 26 de janeiro de 2010

245) Lula feliz na enchente

Acredito que também será importante para o contexto, digamos, psicológico das eleições...

LULA FELIZ NA ENCHENTE
Reinaldo Azevedo, 26/01/10

Eu vou explicar pra vocês por que o filme Lula, O Filho do Brasil, dançou. Arnaldo Jabor acha que foi por causa da patrulha ideológica. O povo, convenham, não sabe se isso é de comer, beber ou montar… Mas, antes, terei de fazer algumas considerações.

Lula, como sabemos, gosta de temperar as suas análises com fatos de sua vida pessoal. Embora ele seja muito apreciado pelos marxistas do calcanhar sujo, fiquei sabendo que Jacques Le Goff pensa em conceder-lhe o título de doutor honoris causa em Conversa Mole de Cotidiano. A Conversa Mole do Cotidiano é a história do cotidiano com o cotovelo no balcão. Lula é, assim, um pós-Annales, no bom sentido naturalmente, que é o francês…

Nada escapa à sua biografia. Passado, presente e futuro do Brasil; felicidades e dramas do povo; o destino das nações; o devir do Haiti, o porvir da América… Sempre há um acontecimento, uma ocorrência, uma historinha na vida do filho de Dona Lindu que servem como metáfora ou parábola daquilo que experimentamos. Pode-se dizer ainda, numa outra linha de análise, que Lula é um neoplatônico: tudo o que acontece já foi antes contemplado pela alma, e este mundo é mera reminiscência — com uma pequena variação, claro: a “alma”, no caso, não sendo a do Caboclo Arranca Toco, é mesmo a do Caboclo Lula…

O “Filho do Brasil” recebeu ontem a Medalha 25 de Janeiro do prefeito Gilberto Kassab. São Paulo vive neste janeiro o pior aguaceiro em 77 anos. Se chover hoje, será o 35º dia consecutivo. E Lula decidiu falar das enchentes. A propósito: um pouco mais tarde, no Rio, tentou mudar de assunto, mas ficou ilhado numa creche — por causa das… enchentes!!!

Muito bem. Na capital paulista, depois de oferecer o PAC 2 como solução para os males da cidade, decidiu narrar a sua própria experiência. Mandou ver:
“Aqui, eu fui morar na Vila Carioca, que dava enchente todo final de ano. Não é de hoje que dá enchente. Naquele tempo, eu trabalhava nos Armazéns Gerais Colúmbia… A gente, muitas vezes, NÃO IA TRABALHAR porque a [avenida] Presidente Wilson enchia e, OBVIAMENTE EU GOSTAVA PORQUE EU NÃO TINHA DE TRABALHAR.”

Ah, bem, se eu fosse o cara azedo que dizem alguns jornalistas sem valor (enquanto ajudam a afundar os veículos em que trabalham), poderia escrever que a confissão demonstra que Lula nunca gostou muito do batente mesmo. Sem trabalhar propriamente — sabem, né? Trabalho é aquela obrigação que ou você cumpre ou tem de cantar em outra freguesia —, Lula está desde 1975, quando virou poder no sindicato. A partir dali, viveu sempre como NÃO vive um burguês típico — que TRABALHA. Lula, nestes 35 anos, está mais para um aristocrata, um fidalgo. Esperto, ele submeteu a mácula de ofício a uma ligeira torção: arrota uma sapiência quase sobrenatural porque sujou um dia a mão de graxa. Ah, mas isso seria muito azedo. Os jornalistas sem valor, que tanto se valorizam, diriam: “Mas como ele é reacionário e azedo!” A fala me trouxe uma iluminação.

Por que Barretão deu com os burros n’água
Eu ainda não vi Lula, o Filho do Brasil no cinema. Não vejo filmes piratas. Mas, se os visse, de pouco adiantaria no caso. A versão encalhada nos camelôs, me informam, é falsa. Estão vendendo o documentário A Greve, de Leon Hirszman. Vejam que interessante: a cópia falsa sobre a falsa vida de Lula trata de um evento verdadeiro, que é a greve dos metalúrgicos de 1979. Mas já me desviei de novo. Volto ao ponto.

Por que o filme flopou? Por tudo o que me dizem, dados os trailers da TV e dos cinemas — invariavelmente vaiados (nos cinemas e aqui em casa) —, construiu-se um Lula segundo, lá vou eu usar vocabulário pseudo, o olhar dos intelectuais. Não que o filme de Barreto, tudo indica, tenha lá grande complexidade. Mas se trata, inegavelmente, de um herói com têmpera de aço, a quem não faltou também um tanto de predestinação. É o homem do realismo socialista, porém temperado por certo misticismo de extração religiosa.

Será que o povo vê Lula, o de verdade, por esse filtro? A academia gosta de pensar que ele é o “intelectual orgânico” de sua classe. O homem ignora categorias do marxismo, e a intelectuália de esquerda sabe disso. Ocorre que ela considera que o marxismo não o ignora. Nesse estrito sentido, ele não seria personagem, vamos dizer, de sua própria vida privada, mas expressão de um movimento de crescente conscientização das massas, que aponta para um futuro. Por mais meloso e novelístico que o filme possa ser, estou certo de que esse ingrediente está lá: Lula seria a vanguarda de uma história que se move como organismo vivo, com um sentido determinado, com um vetor claramente definido.

Não poderia mesmo dar em boa coisa. O Lula de verdade é este que falou sobre a enchente, o que ficava contente quando vinha o aguaceiro porque não precisava trabalhar. E o “trabalho”, na mística e na mitologia marxistas, é a único ativo que o trabalhador tem de realmente seu — além dos grilhões a perder, claro… É com esse ativo que ele faz a revolução. Mas quê… Lula até achava conveniente o drama. Mucanaíma preferia ficar com água pela cintura a pôr a serviço da classe o seu ativo revolucionário…

Pois é… Só os intelectuais e certa classe média do miolo mole, que padece de uma espécie de bovarismo político (que vê com olhos românticos a sapiência natural do homem do povo), vislumbram em Lula esse demiurgo dos trabalhadores e dos pobres, esse predestinado, esse Cristo de São Bernardo. O povão não tem, vênia máxima, esses fricotes analíticos. Aprecia em Lula aquilo que aqueles outros até repudiam: essa esperteza malandra. Dá, se querem saber, pouco importância à mitologia do redentor de uma classe e dos pobres; preferem o sujeito safo, que chegou lá mesmo sem ter título — não porque, como querem os tontos, o consideram um gênio natural, mas porque lhe atribuem artimanhas que lhe permitem vencer, iludir ou ultrapassar políticos eventualmente mais bem-preparados. A idéia do super-homem, porém com um grande coração, é tara de ilustrados — ou, vá lá, quase isso.

O Lula que engana, que passa a perna nos outros, que ficava feliz com a enchente porque não tinha de trabalhar, que pedia a auxiliares no sindicato que sempre lhe mandassem as viuvinhas ajeitadinhas com problemas — era a sua forma de homenagear o morto… — aparece no filme? Não! Os Barretos cometeram o erro de ignorar o Lula por muitos apreciado em benefício de uma visão romantizada, que, no máximo, atrai a militância petista. Aparecesse ele no filme dando um truque em alguém, fazendo alguma pequena trapaça, buscando se dar bem de maneira nem sempre lícita, e o filme seria um estouro de bilheteria.

Ora, os altos índices de aprovação do governo Lula nada têm a ver com a sua moral reta, inquebrantável, incorruptível. Ao contrário até: espera-se dele que dê um truque em alguém; sua virtude está em iludir, não em dizer as verdades eternas.

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